‘Maria Madalena’ é interessante e iluminador
apesar das virtudes do livro, autor Michael haag não consegue escapar da especulação ao narrar história irrecuperável
Qualquer coisa que se queira escrever sobre Maria Madalena no século 21 é, em certo sentido, um exercício de pareidolia —aquele fenômeno psicológico que às vezes leva pessoas perfeitamente razoáveis a enxergar monstros ou santos num pedaço de pão ou nas nuvens do céu.
Com base no Novo Testamento, só é possível concluir trÍs coisas (não muito informativas) sobre a moça: 1) Ela foi uma seguidora de Jesus; 2) Usava seus recursos para financiar as atividades do Nazareno; 3) Era considerada uma das primeiras testemunhas da ressurreição dele. Como escrever uma biografia de mais de 300 páginas a partir de colheita tão pobre?
É claro que o historiador britânico Michael Haag, autor do livro “Maria Madalena - Da Bíblia ao Código Da Vinci: Companheira de Jesus, Deusa, Prostituta, Ícone Feminista”, sabe de tudo isso.
Inevitavelmente, portanto, sua obra não é um relato da vida da discípula de Cristo, uma história que, por definição, é irrecuperável para nós, mas uma análise de como os últimos 2.000 anos da religião e da cultura no Ocidente a usaram como um espelho, ou como uma tela na qual projetar expectativas e preconceitos.
Uma coisa é inegável: a estreia histórica de Madalena tem algo de iconoclasta. Junto com um pequeno grupo de outras mulheres mencionadas nos Evangelhos, como Joana e Salomé, ela teria rompido com a submissão feminina frequentemente exigida pela tradição judaica para seguir o Nazareno pelas estradas da Galileia e da Judeia. Essa participação das mulheres no movimento de Jesus era, por si só, um dos aspectos revolucionários da pregação dele.
Com a expansão do cristianismo primitivo pelo Mediterrâneo, porém, o papel de relevo das mulheres, ainda notável nas cartas do apóstolo Paulo (ativo até a década de 60 d.C.), diminui sensivelmente, e Maria Madalena desaparece do registro histórico.
E, no entanto, ela parece ressurgir com força total a partir do século seguinte, com a gÍnese do movimento gnóstico cristão.
Baseado na ideia de que o conhecimento secreto (e não a fé na morte e ressurreição de Jesus) é o caminho para a salvação, o gnosticismo elegeu Madalena como sua guru, retratando-a como a discípula favorita de Jesus, contra a qual se contrapõem Pedro e outros apóstolos supostamente obtusos, incapazes de compreender o que seria a verdadeira mensagem de Cristo.
Tudo isso, vale ressaltar, provavelmente não vem de informações históricas confiáveis sobre essas figuras, mas é, em essÍncia, elaboração teológica e polÍmica política entre os diferentes grupos cristãos.
O bom resumo da ascensão e queda do cristianismo gnóstico e do movimento dos cátaros (seita da França medieval que pode ser vista como um renascimento do gnosticismo e foi esmagada por uma cruzada) é o ponto forte da obra.
O irônico é que, apesar dessas virtudes do livro, o próprio Haag está longe de escapar completamente da tentação da pareidolia.
Em uma douta discussão sobre as variantes de manuscritos dos Evangelhos, por exemplo, ele aponta um detalhe intrigante: algumas das cópias mais antigas da Bíblia em grego, como o Códice Sinaítico e o Códice Vaticano, datados do século 4º d.C., não mencionam o povoado de Magdala, suposta origem do nome Madalena. Em vez disso, o nome usado nesses manuscritos é Magadan.
A partir desse enigma linguístico, ele propõe que o apelido de Maria viria do aramaico magdal, “torre”. Jesus, conhecido por dar apelidos sonoros a seus seguidores (como Boanerges, “filhos do trovão”, para os irmãos Tiago e João, ou Pedro, “a Rocha”, para Simão), teria dado a ela o título de “a Torre” ou mesmo “o Farol”, por analogia com os faróis que guiavam os barcos no mar da Galileia.
O epíteto seria mais um indício da importância da mulher no movimento de Jesus. Vale dizer que tudo isso não passa de especulação levemente baseada em filologia.
Da mesma forma, embora conheça os (fortes) argumentos históricos contra a ideia de uma relação conjugal entre Cristo e Maria Madalena, o escritor parece não resistir à tentação de deixar uma portinhola aberta para essa ideia —afinal, raciocina ele, se Jesus gostava de comer bem, beber vinho e de boa conversa, por que evitaria se casar?
Para esses pontos, vale ingerir o proverbial grão de sal antes, embora o livro, no geral, seja interessante e iluminador.
Ismar Tirelli Neto Poeta, é autor de ‘os ilhados’ e ‘ramerrão’ (7letras)
Em 1990, o escritor Serguei Dovlátov morre, em Nova York. Tinha 50 anos incompletos. A União Soviética da qual emigrara sob pressão do KGB em fins dos anos 1970 vivia seus momentos finais.
Em sua América de “adoção”, no entanto, contava já com um público fiel, forjado sobretudo entre os leitores da prestigiosa revista The New Yorker, na qual a leviandade selvagem de sua prosa encontrou espaço para vicejar.
Antes de Dovlátov, somente um outro autor russo havia publicado ficção lá: Nabokov.
À altura de sua morte, Dovlátov vinha publicando novelas havia pouco mais de uma década, à razão de uma por ano. Sua prosa, marcadamente autobiográfica, prima por períodos curtos e pela aversão aos juízos altissonantes.
O poeta e amigo de juventude Joseph Brodsky, em aspas estampadas na quarta capa deste “O Ofício”, afirma: “É difícil escapar de seu tom despojado”.
Realmente, a prosa de Dovlátov —vertida aqui ao portuguÍs por Daniela Mountian e Yulia Mikaelyan—, não se lÍ, se compulsa.
As duas novelas que compõem “O Ofício” tematizam, em essÍncia, o percurso do autor em busca de ser, de fato, um autor.
A primeira enfoca sua atuação intelectual no domínio soviético, e os obstáculos que o regime impunha à circulação de textos que fossem de encontro às suas diretrizes morais; a segunda, os primeiros anos no “Ocidente decadente”.
Nenhuma das novelas tropeça nos exageros típicos da autobiografia literária. Dovlátov se defende da própria vocação com espirituoso distanciamento de si. O fato de que o livro é salpicado de causos —os “Solos na Underwood”— protagonizados em sua maioria por amigos e colegas de profissão parece concorrer para esta impressão. O que se desenha é um autorretrato feito de traços alheios; um híbrido entre depoimento pessoal e documento geracional.
Ao contrário de tantos autores fascinados pelas circunstâncias de sua própria formação, Dovlátov não se mostra nem grave, nem sentimental. Não faz caso da literatura como missão. Mas faz caso. Sem nunca perder de vista a dimensão de trabalho térreo da escrita, mostra-se incansável em suas tentativas de publicação, ama o que faz com um amor perspicaz e constante.
Em “A Mente Cativa”, o poeta polonÍs Czeslaw Milosz discorre sobre o realismo socialista nos seguintes termos: “No campo da literatura, proíbe o que em qualquer época foi a tarefa fundamental do escritor —observar o mundo sob um ponto de vista independente, dizer a verdade como ele a vÍ e, assim, manter vigilância assídua sobre o interesse da sociedade como um todo”.
Ainda que “O Ofício” trate, de algum modo, da pan-burocracia soviética, não é em Kafka que encontraremos os antecedentes de Dovlátov, mas nos contos mais leves de Tchékhov. O próprio autor reivindica textualmente o parentesco, e não é difícil enxergar as afinidades. Ambos escrevem de forma atemporal e operam pequenos milagres de personificação, tornando personagens e cenas visíveis e palpáveis mediante a apresentação de poucos e decisivos traços. Um Livro para Rufino ***** rufino. tradução: rodrigo Bravo. ed. Córrego, r$ 25 (90 págs.)
Guilherme Gontijo Flores Professor de língua e literatura latinas na uFPr e tradutor
Certas obras tÍm um percurso de sobrevivÍncia muito particular: elas podem chegar por inteiro como que por milagre, com apenas um ou dois manuscritos que atravessaram séculos, como é o caso da poesia de Catulo; elas podem chegar em fragmentos de citações antigas e de livros preservados ao acaso nas areias do Egito, como é o caso do que restou de Safo.
Mas podem chegar simplesmente porque eram tão boas que figuravam em antologias, que por sua vez fizeram o caminho da sobrevivÍncia, carregando consigo milhares de poemas. Esse é o caso de um ilustre desconhecido mesmo entre classicistas: o poeta Rufino.
Rufino simplesmente, sem pai, nem mãe, nem terra; porque nada sabemos do homem Rufino; aliás, nosso conhecimento é tão precário que as datações sobre quando teria vivido variam —nos casos mais precisos e restritos!— em torno de 300 anos, entre os séculos 1º e 4º, o auge do Império Romano.
Sabemos apenas que foi escritor de epigramas (um gÍnero de origem grega, marcado pela concisão) e que compunha em grego, porque todos os poemas que sobreviveram estão no livro 5 da “Antologia Palatina”, o maior repositório de epigramas antigos conservados em manuscritos que chegaram até a Idade Moderna, num manuscrito escrito em torno de 980 d.C.
Como o livro 5 da “Antologia” reunia apenas poemas eróticos, tudo que chegou de Rufino cabe na categoria do epigrama amoroso. No entanto atente-se para o fato de que amoroso aqui pode incluir pornográfico, debochado, ácido, e não apenas declarações delicadas de amor. Rufino, nesse quesito, foi um mestre da variedade em meio à retomada de temas, tópicos e personas, apesar da obra tão parca que nos chegou.
“Um Livro para Rufino”, trabalho executado pelo jovem poliglota Rodrigo Bravo— com apresentações dos veteranos Antonio Vicente Seraphim Pietroforte e João Angelo Oliva Neto—, propõe a reconstrução de um livro a partir do que restou.
São 39 epigramas traduzidos com notas, na ordem em que aparecem na “Antologia Palatina”; e é curioso ver como eles, de fato, parecem nos mostrar o desenho do que pode ter sido um livro com começo, meio e fim, contando aventuras amorosas com algumas mulheres, mas sobretudo com Pródice, amada que envelhece junto com o poeta ao longos dos poemas.
O livro ainda é acompanhado de um posfácio do próprio Bravo, em que este revela os principais procedimentos e critérios de leitura que guiaram sua tradução.
O resultado nem sempre é feliz (já que alguns versos são truncados, há uma leitura equivocada do metro do epigrama 5.72, que está escrito apenas em hexâmetros, etc.); no entanto, Bravo consegue realizar algumas pérolas, como é o caso da tradução de 5.47: “Rezei por tantas vezes, Teleia, por tÍ-la / enchendo de viçoso amor meu peito; / agora que chegaste com teus doces membros, / nua, cansado, meu membro se abate. / ” vigor, por que sofres? Levanta e não cedas, / encontrarás assim melhor fortuna”.
Entre o riso da brochada e o rigor da poesia, Rufino fez poesia fina que tanto circulava a ponto de ser reunida em antologias que cruzaram o tempo.
Bravo hoje nos concede a promessa de um livro perdido desse epigramatista obscuro, em grego e portuguÍs. Rufino, entre trancos e barrancos da história, agora chega muito bem ao Brasil.