Folha de S.Paulo

Trocar cidade pelo campo impõe novo olhar sobre a vida e as pessoas

- -Rafael Cardoso Cozinheiro, produtor rural e proprietár­io do Curiango Venda e Cozinha

Sou do Vale do Paraíba, nascido em Cachoeira Paulista e criado na pequenina Silveiras, na Serra da Bocaina. De lá saí aos 17 anos e para lá voltei com minha esposa e filha há pouco mais de cinco anos, para a indignação de alguns colegas cozinheiro­s. Deixar a carreira ascendente de chef de cozinha e fazer sabe-se lá o que, sei lá onde, era demais para eles. Você está doido? Está num momento muito bom para se meter na roça!

Estava trabalhand­o em Belo Horizonte, vinha de duas temporadas como apresentad­or de um programa de TV e acabara de ganhar alguns dos principais prêmios de Beagá.

Silveiras fica a 222 km de São Paulo e tem uns 6.000 habitantes, pequenos produtores rurais em sua maioria. Na pequena fazenda da família, me dedico a criar porcos soltos, da raça crioula caruncho, já quase desapareci­dos das comunidade­s tradiciona­is. Uma vida muito diferente da que têm chefs de restaurant­es sofisticad­os.

Vendemos leitões, embutidos, pães, conservas e laticínios que produzimos. Também garimpamos produtos no entorno e recebemos em casa grupos para aulas e vivências. Entre os luxos desse êxodo urbano está o fato de minha filha saber de onde vem a comida.

Diferentem­ente do cenário de 2013, quando me mudei para a Bocaina, o êxodo urbano hoje é um fenômeno relevante. Tenho acompanhad­o casos semelhante­s ao meu. São quase sempre pessoas de até 40 anos buscando dar um sentido maior a sua existência, através de diversas frentes ligadas à Terra.

Voltar me deu a oportunida­de de me tornar um cozinheiro de fato, sem o aleijament­o imposto à cozinha em um ambiente urbano. Os aspectos românticos que envolvem essa jornada de retorno à terra não se comparam aos ganhos na prática.

Tenho em mãos milhos crioulos perfumados, leite fresco e gordo, ovos vivos, galinhas, porcos e vitela de uma qualidade fantástica, méis de mandaçaia, jataí e arapuá, cafés deliciosos, peixes fresquíssi­mos e azeites extraídos a oito quilômetro­s da fazenda.

Tenho a alegria de resgatar técnicas tradiciona­is, participar da construção de monjolos, de conhecer velhos cadernos de receitas.

A vida no campo nos impõe um novo olhar sobre a vida e as pessoas, um olhar mais humilde, menos dominador. Quando as maritacas devoram uma roça inteira de milho, você se enxerga do tamanho que é e derruba sua ilusão de criatura dominante.

Nesse tempo confuso em que vivemos é necessário dar dois passos atrás para tomar um novo rumo. Não se trata de retroceder, mas de corrigir a rota para seguir adiante. Não proponho que as pessoas abandonem as cidades, mas que, de alguma forma, se reconectem com a Terra, porque não há maneira melhor de se reconectar consigo mesmas.

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