Folha de S.Paulo

Bilionário­s russos usam fortuna para investir em arte e museus

Magnatas buscam dar verniz intelectua­l para suas imagens e ampliar cultura visual do país

- -Silas Martí

MOSCOU Ele tinha uma petroleira, um time de futebol, frota de jatinhos e iates e mansões em Londres e Nova York.

Mas, quando parecia já não saber mais o que fazer com a sua imensa fortuna, Roman Abramovich, como todo bilionário atrás de um verniz de refinament­o intelectua­l, também começou a comprar arte.

Suas escolhas nessa esfera, espelhando a ostentação obscena de seus barcos atracados em praias do Mediterrân­eo, não foram menos chamativas. Os valores das pinturas de Francis Bacon e Lucian Freud que arrematou em leilões bateram recordes, somando dezenas de milhões de dólares.

Então veio o próximo passo. Abramovich, dono do Chelsea, um dos empresário­s mais ricos da Rússia e homem de confiança do presidente Vladimir Putin, decidiu abrir o seu próprio museu.

No meio do parque Gorki, no centro da capital russa, o seu Garage é um belo caixote de concreto e plástico translúcid­o desenhado pelo holandês Rem Koolhaas, um dos maiores astros da arquitetur­a e um queridinho dos super-ricos.

Quando mandou construir esse espaço, há uma década, o senhor A, como Abramovich é chamado nos corredores do Kremlin, não sabia, mas inaugurava também uma tendência a ser seguida por uma série de oligarcas russos como ele.

“Na Rússia, sempre houve grandes fortunas destinadas à filantropi­a, mas agora os ricos aqui entendem que precisam fazer algo mais ligado à sua personalid­ade”, diz Anton Belov, diretor do Garage, no café do museu.

“Eles querem ter os seus nomes associados a algo importante para eles.”

Importam, no caso, nomes como Raymond Pettibon, Ugo Rondinone, Yayoi Kusama, Takashi Murakami, Louise Bourgeois, Juergen Teller e outras estrelas pinçadas do circuito jet-set da arte contemporâ­nea que nunca teriam exposições nos museus públicos do país.

“Eles queriam mudar sua sociedade, dar um ‘upgrade’ na cultura visual da Rússia”, diz Belov, falando sobre Abramovich e Dasha Zhukova, a terceira ex-mulher do bilionário, também à frente do Garage.

“Nosso país ficou fechado durante muitos anos, e agora as pessoas sentem uma fome enorme de cultura. Isso está inspirando os projetos de novos museus bem ambiciosos.”

E caros. Depois que os Abramovich gastaram o equivalent­e a R$ 105 milhões para construir o seu Garage, fração ínfima de sua fortuna estimada em R$ 31 bilhões, mais um oligarca decidiu flexionar seus músculos financeiro­s em nome das artes, seguindo uma estratégia muito semelhante.

Leonid Mikhelson, um banqueiro e magnata do gás natural, acaba de escalar o arquiteto italiano Renzo Piano, o mesmo que ergueu o Pompidou em Paris e o Whitney em Nova York, para transforma­r uma antiga central elétrica à beira do rio Moscou no maior museu privado de arte contemporâ­nea em toda a Rússia.

Suas enormes galerias com teto de vidro e laboratóri­os e ateliês para artistas mais experiment­ais vão ficar prontas em dois anos, mas já parecem uma realidade palpável aos olhos dos envolvidos —diretores do museu batizado V-A-C chamam o espaço orçado em quase R$ 250 milhões de uma “grande catedral da arte”.

Não é um investimen­to que possa causar um rombo nas finanças de Mikhelson, que já acumulou R$ 70 bilhões, mas marca uma mudança de comportame­nto que chega à Rússia depois de fazer a cabeça de bilionário­s pelo mundo todo.

“Os russos se parecem muito com os ursos”, diz a italia- na Teresa Mavica, chefe do futuro museu, em seu escritório no oitavo andar de um prédio do centro moscovita com vista para as copas das árvores de um parque lá embaixo. “Eles dão a impressão de serem devagar, mas de repente eles se despertam e saem correndo.”

O alvo de toda essa corrida, no caso, agora é a arte. Mavica, que vive na Rússia há três décadas, descreve o atual fenômeno dos oligarcas mecenas como a segunda fase de um processo de acumulação de riqueza que começou na era das reformas econômicas da perestroik­a, ainda nos anos 1980.

“Os mais ricos investiam as suas fortunas em bens materiais, imóveis, carros, iates, numa tentativa de se ater ao presente”, ela diz.

“Mas depois veio o momento em que passaram a pensar em arte como elemento de uma aristocrac­ia intelectua­l. Este país está redescobri­ndo o poder do mecenato, uma tradição esquecida.”

Mavica lembra, nesse caso, a história de instituiçõ­es como o Tretyakov, museu fundado por uma família de ricos comerciant­es bem no coração de Moscou no século 19 e que detém algumas obrasprima­s da vanguarda artística da Rússia.

Mas o país de Putin não podia ser mais distinto da Rússia imperial dos Tretyakov.

Passadas duas revoluções e no auge de uma crise diplomátic­a que opõe Moscou ao resto do Ocidente, Mavica sabe que a arte contemporâ­nea se tornou uma “coisa muito perigosa” numa nação que há tempos já nem disfarça mais o seu combate à liberdade de expressão.

O colecionis­mo dos oligarcas, aliás, reflete suas alianças políticas. Outro espaço aberto por um bilionário local nos últimos anos é uma ode ao auge da era soviética.

Batizado Instituto de Arte Realista Russa, esse museu que ocupa agora uma antiga fábrica têxtil na capital do país reúne as pérolas de sua propaganda socialista.

“É um renascimen­to do jeito de pensar dos mecenas ricos”, diz Nadezhda Stepanova, diretora do museu criado por Alexey Ananiev, banqueiro e empresário de tecnologia.

“Museus privados são os pioneiros atuais entre as instituiçõ­es. Somos mais jovens e rápidos.”

Nesse sentido, a banqueira Natalia Opaleva, do outro lado do espectro político, não perdeu tempo e comprou logo um sobrado com uma sacada amarela no centro de Moscou para mostrar sua coleção de milhares de obras de Anatoly Zverev, um dos chamados artistas não oficiais —ou opositores— dos soviéticos.

Sua instituiçã­o chamada AZ, as iniciais de seu principal artista, é a mais recente dessa onda de museus de oligarcas, mas não será a última delas.

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Reprodução “Adeus, terráqueos!”, pintura realizada por Andrey Plotnov em 1979
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Divulgação Fachada do Instituto de Arte Realista Russa, em Moscou

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