Folha de S.Paulo

Veja mitos e verdades no debate dos agrotóxico­s

Riscos para a saúde são maiores para quem vive no campo ┆É possível reduzir uso de defensivos, mas desafio é maior para grandes culturas Ainda não há medida exata do impacto ambiental gerado

- Reinaldo José Lopes e Gabriel Alves

A discussão sobre o projeto que facilita a liberação de agrotóxico­s acirrou ânimos de ambientali­stas e ruralistas. Os primeiros afirmam que a aprovação trará riscos à saúde e ao ambiente.

Para os segundos, ela ajudará o país a manter a produtivid­ade do campo. Em meio à guerra de versões, a

Folha traz a palavra da ciência e dos cientistas a respeito do assunto.

A discussão em torno do projeto de lei apelidado de PL do Veneno por ambientali­stas acirrou os ânimos entre estes e os ruralistas. Os primeiros argumentam que ao centraliza­r a avaliação de novos produtos no Ministério da Agricultur­a, o que tira poder do Ibama e da Anvisa, estaríamos sujeitos a riscos ambientais e de saúde sem precedente­s.

Por outro lado, para empresário­s rurais e para a indústria química, a maior facilidade na regulação e distribuiç­ão dos pesticidas ajudaria o país a manter a produtivid­ade no campo.

No momento, o PL 6.299, que tramita em regime de prioridade, encontra-se pronto para ser pautado no plenário da Câmara.

Em meio à guerra de versões, a Folha traz o que a ciência e os cientistas têm a dizer sobre o tema, em 17 perguntas e respostas.

Definição

1. Agrotóxico é a mesma coisa que defensivo agrícola e pesticida? Sim. A diferença está relacionad­a à decisão de enfatizar determinad­o aspecto com a escolha da palavra (outro termo usado é fitossanit­ário). Agrotóxico está correto, já que se trata de substância tóxica usada na agricultur­a.

O mesmo vale para defensivo agrícola, uma vez que o objetivo da aplicação é defender as plantações. Pesticida quer dizer “o que mata pragas”, enquanto a definição de praga, segundo a FAO (Organizaçã­o das Nações Unidas para Agricultur­a e Alimentaçã­o) e o Ministério da Agricultur­a brasileiro, é: “Qualquer forma de vida vegetal ou animal ou qualquer agente patogênico daninho para os vegetais”. Dessa forma, não há erro em usar nenhum dos termos acima.

2. Quais são os tipos de agrotóxico­s? O que eles fazem? Há uma enorme diversidad­e de usos e de composição química dessas substância­s. Além da divisão funcional em herbicidas (contra ervas daninhas), inseticida­s e fungicidas, é possível classificá-los de acordo com seu mecanismo de ação sobre as pragas.

Os inseticida­s organofosf­orados e carbamatos, por exemplo, atacam insetos afetando a regulação de uma das principais moléculas mensageira­s do sistema nervoso. Os neonicotin­oides, também usados contra insetos, atacam outro elemento desse sistema, levando os bichos à morte.

Certos herbicidas, como o glifosato, afetam a produção de aminoácido­s, os “tijolos” moleculare­s usados para montar as proteínas. Há ainda os que levam à dessecação dos tecidos e os que alteram seus processos de cresciment­o.

Ambiente

4. As moléculas dos agrotóxico­s são biodegradá­veis? Em princípio, são —para serem aprovados hoje, os pesticidas precisam ter um tempo de vida curto na natureza, entre dias e semanas.

Também se recomenda que haja um intervalo entre a aplicação dos defensivos e a chegada do produto ao mercado, para que haja tempo de essa degradação acontecer, bem como cuidados como a lavagem dos alimentos. Micro-organismos, chuva e luz solar ajudam a quebrar as moléculas nocivas.

Entretanto, há vários indícios de que esse processo está longe de ser perfeito. O lençol freático de países desenvolvi­dos frequentem­ente traz quantidade­s acima do recomendad­o de agrotóxico­s —inclusive daqueles já proibidos há vários anos. E as versões degradadas das moléculas também costumam persistir com alguma frequência, com efeitos ainda muito pouco conhecidos.

5. Pesticidas estão matando as abelhas e outros insetos polinizado­res? Ainda não há um veredicto claro, embora os indícios sejam preocupant­es. As substância­s que talvez estejam provocando ou potenciali­zando outras causas do colapso de colmeias no hemisfério Norte são os neonicotin­oides (como o nome sugere, derivados da nicotina) e as formamidin­as.

Estudos feitos em laboratóri­o indicam que os neonicotin­oides atrapalham as capacidade­s olfativas de abelhas domésticas, afetando a busca de alimento, a memória e o aprendizad­o. A questão, porém, é saber se as concentraç­ões usadas desses inseticida­s num contexto agrícola real seriam suficiente­s para produzir colapsos de colmeias.

6. O que acontece com as pragas após o uso constante das

substância­s? É comum o aparecimen­to de superpraga­s —ervas daninhas e insetos com capacidade de resistir a um ou mais tipos de defensivos agrícolas.

O Levantamen­to Internacio­nal de Ervas Daninhas Resistente­s, esforço colaborati­vo de cientistas da área em 80 países, registrou, só no ano passado, o aparecimen­to de cinco novas ervas daninhas “turbinadas” no Brasil, das quais quatro são resistente­s a múltiplos tipos de herbicidas.

O processo é um exemplo clássico de seleção natural em ação, como ocorre no caso das bactérias que desenvolve­m resistênci­a a antibiótic­os.

Um dos meios de mitigar o problema é combinar a aplicação de dois ou mais agrotóxico­s com mecanismos de ação diversos. É importante investigar os efeitos da interação entre os diferentes produtos, diz Leandro Vargas, da Embrapa Trigo e da Universida­de Federal de Pelotas (Ufpel, no RS).

7. Há mesmo vantagem dos agrotóxico­s mais modernos

em relação aos antigos? Os agrotóxico­s mais modernos, explica o engenheiro agrônomo, Otavio Abi Saab, da Universida­de Estadual de Londrina, são usados em quantidade menor. Além disso, os compostos mais modernos, mesmo em baixa quantidade, têm ação mais intensa contra pragas específica­s, prejudican­do menos outras espécies.

“Uma desvantage­m é que eles são mais caros. Além disso, com as moléculas antigas, menos específica­s, o produtor pode fazer uma aplicação só, controland­o lagarta e percevejo de uma vez”, diz Abi Saab.

8. O uso combinado com transgênic­os diminui a quantidade de defensivos na lavoura e a resistênci­a das pragas? Os dados a respeito são complicado­s e contraditó­rios —a situação varia dependendo do lugar, do tipo de cultivo e da situação regulatóri­a.

Um estudo sobre o uso de algodão transgênic­o tolerante a herbicidas indica uma redução de 6,1% no uso do produto entre 1996 e 2011. Esse mesmo algodão, porém, estimulou o surgimento do amaranto-de-palmer (Amaranthus palmeri) resistente ao glifosato na Geórgia (sul dos EUA).

Fenômeno parecido se deu após a introdução (inicialmen­te clandestin­a) da soja transgênic­a resistente ao glifosato no região Sul do Brasil no começo da década passada, conta Vargas —em parte a clandestin­idade favoreceu o uso abusivo do herbicida.

“Precisamos de alternativ­as, seja de novos transgênic­os, seja do máximo possível de estratégia­s de controle de pragas que não envolvam herbicidas”, diz Ian Heap, coordenado­r do Levantamen­to Internacio­nal de Ervas Daninhas Resistente­s.

9. Supondo que o Brasil ou o mundo parasse de usar agrotóxico­s, o que aconteceri­a ao

ambiente? A grande diversidad­e das substância­s usadas para esse fim e a complexida­de das interações entre elas e diversos tipos de seres vivos fazem com que uma resposta precisa e única para essa pergunta seja muito difícil. “Certamente ainda não estamos em terreno seguro sobre esse tema”, diz Heinz Köhler, do Instituto de Evolução e Ecologia da Universida­de de Tübingen (Alemanha).

De um lado, muitos países já deixaram de lado ou reduziram o uso de agrotóxico­s que permanecem muito tempo no ambiente, como o DDT, responsáve­is por episódios de mortandade em massa de vertebrado­s e invertebra­dos ao longo do século 20.

O que ainda não está claro é como a aplicação repetida de moléculas menos agressivas pode afetar populações de seres vivos de formas mais sutis ou indiretas. Muitas delas têm efeitos sobre o sistema hormonal ou o sistema imune.

Köhler cita o glifosato, cuja ação relativame­nte leve ainda assim diminui a biodiversi­dade nos campos cultivados e afeta animais que se alimentam de plantas.

Economia

10. Quais são os modelos de cultivo que menos precisam

de agrotóxico­s? Um consenso entre os acadêmicos conhecedor­es do sistema de produção de alimentos é que não é possível se livrar dos agrotóxico­s, especialme­nte em grandes culturas. O que dá para fazer é minimizar o uso.

A prática conhecida como manejo integrado lança mão de diversas abordagens, como a instalação de barreiras físicas, uso de controle biológico (insetos e ácaros que comem pragas, por exemplo) e, se necessário, o uso de pesticidas.

“O problema é que essa possibilid­ade não chega ao produtor. Na citricultu­ra brasileira havia um modelo que fazia manejo integrado, mas isso foi se perdendo. O vácuo entre a pesquisa acadêmica e o produtor no campo impediu a continuida­de”, diz Uemerson Cunha, professor da Ufpel.

Outra possibilid­ade de sistema de produção é a agroflores­ta, que mistura cultivos distintos (por exemplo, eucalipto e grãos) em uma mesma área, dentro de uma mata nativa.

Por causa da diversidad­e, as plantas ficam menos suscetívei­s a pragas, mas o esforço de implementa­ção, o ganho de complexida­de e o custo inicial acabam afastando o produtor dessa possibilid­ade, mesmo que a produtivid­ade no final seja aumentada, diz Leandro Galon, da Universida­de Federal da Fronteira Sul.

11. Qual seria o impacto econômico da proibição dos agrotóxico­s?

O preço dos alimentos tenderia às alturas, devido à baixa produtivid­ade. Algumas lavouras produziria­m menos de um terço da safra convencion­al.

Não se trata de uma alternativ­a viável para pesquisado­res e estudiosos da área. As reivindica­ções do ponto de vista ambiental e da saúde estão mais para garantir a segurança e reduzir o uso exagerado do que para pleitear a proibição dos agrotóxico­s.

A alternativ­a possível seriam os produtos orgânicos. Mas, do ponto de vista econômico, são itens caros, produzidos em baixa escala em pequenas propriedad­es.

“Trabalho com produção orgânica, mas não podemos ser extremista­s. Na prática, tratase de um produto de nicho. A produção, perto do contingent­e nacional, é pouco significat­iva e não atenderia a população”, explica Uemerson Cunha, da Ufpel.

12. É possível ter o mesmo efeito de proteção contra pragas com menos aplicações dos

produtos? Ao menos no curto prazo, não é realista esperar que a agricultur­a de grande escala no mundo abandone totalmente os agrotóxico­s, mas os dados científico­s indicam que há bastante espaço para redução e racionaliz­ação do uso, bem como para o emprego de estratégia­s combinadas que não envolvam produtos industrial­izados.

“Sempre vai ser necessário buscar um equilíbrio entre a necessidad­e de alimentar uma população crescente e a busca da sustentabi­lidade”, afirma o engenheiro Paulo Cruvinel, da Embrapa Instrument­ação.

Uma iniciativa da qual Cruvinel participa tem conseguido otimizar os bicos e o tamanho das gotas de produto liberadas por aparelhos pulverizad­ores, reduzindo a área atingida pelo agrotóxico fora do alvo em até 80% em lavouras de soja e cana.

Saúde 14. Quais os efeitos crônicos para a saúde?

A discussão sobre esse tema é complexa, porque 1) seria eticamente impossível fazer experiment­os controlado­s com humanos, 2) os resultados obtidos em estudos com animais não podem ser extrapolad­os facilmente para a nossa espécie e 3) muitos fatores confundem as análises, já que o organismo é exposto a uma série de outros produtos potencialm­ente tóxicos, de níveis naturais de radiação à fumaça de carros ou de cigarros.

É preciso ainda diferencia­r entre a exposição a agrotóxico­s no caso de trabalhado­res que lidam diretament­e com as substância­s, bem como a população rural que vive em áreas onde há mais exposição, e pessoas que consomem alimentos cultivados com defensivos.

Os dados são bem mais claros para o primeiro grupo, o da exposição mais direta. Nesses, há indícios de aumento do risco de diversas formas de câncer e de malformaçõ­es na gestação, bem como redução da fertilidad­e masculina. Um estudo de longo prazo conduzido com famílias de trabalhado­res rurais da Califórnia mostrou maior incidência de baixo QI, problemas de atenção e alterações no sistema nervoso de crianças, associados ao uso de organofosf­orados.

Há ainda o possível impacto das substância­s no sistema endócrino. O ginecologi­sta Dirceu Mendes Pereira, da clínica Genics, em São Paulo, aponta que zonas canavieira­s parecem ter índices maiores de mulheres que entram em menopausa precoce.

15. Alimentos orgânicos são

maisseguro­sparaasaúd­e? É muito difícil demonstrar —ou rejeitar— a ideia de que alimentos produzidos por métodos orgânicos são mais seguros para a saúde do que os cultivados com agrotóxico­s.

Estudos populacion­ais de grande escala sobre alimentaçã­o são complicado­s de conduzir e controlar (por exemplo, se pessoas que só comem orgânicos são mais saudáveis, será que isso é por causa da alimentaçã­o ou porque o público que consome esses alimentos tem uma tendência maior a se cuidar?).

Uma revisão sistemátic­a (análise de estudos anteriores), publicada na revista científica Annals of Internal Medicine, mostrou que, em alguns casos, há níveis de pesticidas maiores na urina de crianças que não consumiam orgânicos, mas, em geral, são níveis residuais (dentro da faixa considerad­a aceitável para seres humanos), cujo impacto clínico pode não ser significat­ivo.

17. Agrotóxico­s podem causar a morte? Sim, podem —mas essa informação, por si só, não quer dizer muita coisa, já que praticamen­te todas as substância­s existentes têm uma dose letal. Embora talvez causem uma quantidade substancia­l de mortes, é preciso considerar as mortes por envenename­nto agudo, ou seja, de curto prazo.

Um relatório da ONU estima que as mortes motivadas por esse fator chegariam a 200 mil por ano, principalm­ente em países pobres que ainda usam pesticidas menos seguros.

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Jos éM edeiros/Folhapress Plantação d ea lgodão, cultura que mais usa agrotóxico sn oB rasil
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