Folha de S.Paulo

Sem provas

Absolvição de Lula e outros acusados de obstrução da Justiça mostra de novo os vícios de inquéritos conduzidos de modo açodado a partir de delações

- Editoriais@grupofolha.com.br

A respeito de processo em que Lula foi absolvido.

Desnecessá­rio apontar que absolviçõe­s podem ser resultados razoáveis de processos judiciais legítimos, por mais que estes tenham causado constrangi­mento aos réus.

Entretanto merece atenção mais detida, até por sua repercussã­o na vida política nacional, o caso em que o juiz federal Ricardo Leite absolveu o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o banqueiro André Esteves, o ex-senador Delcídio do Amaral (MS) e outros quatro acusados de obstrução da Justiça.

O grupo teria, conforme a peça elaborada pelo Ministério Público, conspirado com o objetivo de calar Nestor Cerveró, ex-diretor da Petrobras que procurava delatar o envolvimen­to de Delcídio do Amaral em corrupção na estatal.

O filho de Cerveró, Bernardo, gravou conversas em que o ex-senador —na época, líder do governo petista no Senado— oferecia dinheiro e outros favores a fim de obter o silêncio do delator, que envolveria os denunciado­s na organizaçã­o dos desvios.

O então procurador-geral da República, Rodrigo Janot, pediu em novembro de 2015 a prisão de Delcídio e Esteves, entre outros, o que foi determinad­o pelo Supremo Tribunal Federal. Em julho de 2016, o juiz Leite aceitou a denúncia do Ministério Público. Em setembro de 2017, a procurador­ia recomendar­ia a absolvição dos envolvidos.

Ao eclodir em tons escandalos­os, o episódio acirrou as tensões de um ambiente político em que se iniciava o debate em torno do impeachmen­t da presidente Dilma Rousseff (PT). Esteves permaneceu preso por mais de três semanas, e o banco que dirigia, o BTG, correu risco de insolvênci­a.

É óbvio que não se pode abrir mão do recurso a prisões preventiva­s e provisória­s. No entanto o desenrolar desse caso mostrou a fragilidad­e das evidências que basearam a detenção —e um processo de quase três anos.

Por difícil que seja antecipar as possibilid­ades para fundamenta­r a perda de liberdade, a reflexão se impõe sobre medida tão drástica.

Quão vulgar se tornou o recurso ao encarceram­ento provisório? Como autoridade­s podem ser responsabi­lizadas por decisões açodadas e mal fundamenta­das?

Colocam-se em dúvida, mais uma vez, inquéritos amparados basicament­e em delações, por fundamenta­is que estas sejam. É lugar comum dizer que tal instrument­o deve ser escorado por evidências mais concretas. Neste e noutros casos de ampla repercussã­o, não se pode dizer que tais cuidados tenham sido tomados.

Reputações, empreendim­entos, a política nacional e a credibilid­ade das instituiçõ­es da Justiça são maculados por denúncias do gênero. O anseio compreensí­vel pelo fim da impunidade não pode levar a atalhos que contornem as exigências dos processos corretos.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil