Folha de S.Paulo

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Cego há 20 anos, economista comanda loja de discos na República e reconhece seu acervo com o tato e a audição

- Bruno Molinero texto Zanone Fraissat fotos

O cheiro de pastel frito esparramad­o pelas lanchonete­s no térreo da galeria Boulevard do Centro, quase em frente ao Sesc 24 de Maio, invade os corredores, sobe a escada rolante e toma o segundo andar do edifício projetado nos anos 1960. Ali, embaralha-se aos sons das lojas de discos que ocupam quase todo o piso e transforma­m o lugar em referência da cidade quando o assunto é vinil.

No número 118, à esquerda de quem sobe, Celso Marcilio põe um 78 rotações bem perto do ouvido enquanto toca a superfície com a unha. “Dependendo do barulho que faz, você descobre se ele está quebrado”, ensina, cercado por cerca de 8.000 LPs.

Um resumo diria que Celso tem 52 anos e vive há 20 deles sem enxergar, depois de se chocar contra um armário emperrado, ter deslocamen­to de retina e passar por nove cirurgias nos dois olhos. Economista aposentado à força, passou a trabalhar em sebos da capital até abrir a sua própria loja, a Cel-Som Discos. “Eu não sabia nada de literatura nem gostava de português, mas aprendi muito ouvindo os vinis. Quando decidi abrir o meu negócio, escolhi ficar só com a música para não ter ninguém pedindo José de Alencar”, conta às gargalhada­s.

Mas um resumo é pouco para dar conta do passeio cheio de descoberta­s que é visitar o espaço, especializ­ado em bolachas de música brasileira fechadas ou em boas condições. Como um verdadeiro guia, Celso passa a mão rapidament­e pelos encartes do acervo e deixa para trás vinis famosos, entre eles “Expresso 2222”, de Gilberto Gil, e “A Tábua de Esmeralda”, de Jorge Ben Jor. Até que escolhe um.

“Este aqui é ‘Grito Selvagem’, do Teo Azevedo, né?”, pergunta, já esperando a resposta afirmativa. Em seguida, exibe títulos como “Big Parada”, de Formiga e Sua Orquestra, e o álbum de Helio Matheus que leva o nome do cantor. Quando coloca este último para rodar, pousa a agulha do aparelho exatamente na música que deseja: “Mais Kriola”, gravada anos depois por Wanderléa.

A precisão que surfa por rocks psicodélic­os, sambas, faixas instrument­ais e blacks

dos anos 1970 só é possível porque Celso reconhece a maior parte dos álbuns à venda com o toque dos dedos —fruto de organizaçã­o metódica, memorizaçã­o e ajuda da mulher, Sandra, que também trabalha no espaço. “Enxergar ilude, faz com que você esqueça o tato, o olfato, o paladar. Sem a visão, vemos o que os outros não percebem.”

Os outros, no caso, são sobretudo DJs e colecionad­ores estrangeir­os que visitam o local e embarcam nesse passeio musical em busca de raridades —hoje a maior delas é “Louco Por Você”, disco de estreia de Roberto Carlos, lançado em 1961 e vendido a R$ 10 mil.

Nos últimos anos, porém, aumentaram as visitas de jovens que redescobri­ram o vinil. “O disco nunca morreu. Ele sempre foi consumido, mas por grupos fechados. Agora um público maior está se interessan­do. O que é ótimo, porque o som é muito melhor”, diz.

Como se quisesse fazer parte do papo, o terceiro membro da loja sai de trás do balcão e se apresenta com um bocejo. Se Celso é um guia pela música, no dia a dia ele é conduzido por Rudy, 6, cão-guia adotado na Itália. “Mais do que mostrar o caminho, ele é o meu parceiro.” E, provavelme­nte, o cachorro que mais sabe sobre discos em São Paulo. Ou talvez fosse só o cheiro dos pastéis do térreo.

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 ??  ?? O cão-guia Rudy, 6, vai com Celso a todos os lugares
O cão-guia Rudy, 6, vai com Celso a todos os lugares
 ??  ?? Parceria entre Lula Côrtes e Zé Ramalho, “Paêbirú” (1975) teve muitos de seus discos originais destruídos. “É muito raro. O que temos é a primeira reedição”, conta Celso/R$ 380
Parceria entre Lula Côrtes e Zé Ramalho, “Paêbirú” (1975) teve muitos de seus discos originais destruídos. “É muito raro. O que temos é a primeira reedição”, conta Celso/R$ 380

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