Folha de S.Paulo

Antonio Candido, 100

No centenário de um dos maiores intelectua­is do país, jornalista visita a cidade de Bofete, onde o então jovem pesquisado­r fez estudos para seu doutorado há 70 anos. Modo de vida caipira descrito em livro pelo crítico literário já não existe mais

- Por Fernando Granato Jornalista e escritor, é autor, entre outros livros, de “O Negro da Chibata” e “Nas Trilhas de Quixote” Ilustraçõe­s Deborah Paiva É artista plástica

No centenário de um dos maiores intelectua­is do país, morto em 2017, a Folha visitou Bofete (SP), onde o então jovem pesquisado­r fez estudos para o doutorado. A vida caipira descrita em livro já não existe.

Bofete é uma pequena cidade do oeste paulista conhecida como a terra do gigante adormecido, numa alusão a uma montanha que lembra a silhueta de um homem repousando. É também o local onde nasceu Adauto Ezequiel (1921-2009), o Carreirinh­o, um dos precursore­s da música sertaneja de raiz.

Mas foi um acontecime­nto literário que a pôs definitiva­mente no mapa cultural do Brasil: há 70 anos, Antonio Candido de Mello e Souza (19182017), que viria a se tornar um dos intelectua­is mais importante­s do país, começou a desenvolve­r ali o seu célebre estudo sobre os meios de vida do caipira, num trabalho depois lançado em livro, em 1964, com o título “Os Parceiros do Rio Bonito”.

A obra não só veio a se tornar referência do “padrão USP”, a ponto de ser indicada com frequência para alunos de pós-graduação de áreas diversas, como também inaugurou um estilo que marcaria uma geração de estudiosos responsáve­is por renovar a pesquisa e a compreensã­o das manifestaç­ões culturais e sociológic­as do país. Um estilo que mistura vários campos do conhecimen­to para atingir um entendimen­to mais completo da realidade histórica.

De acordo com a ensaísta e crítica literária Walnice Nogueira Galvão, o livro abriu caminho no Brasil para estudos da cultura caipira e criou a possibilid­ade de renovação da chamada sociologia rural. “O trabalho é inovador na medida em que rompe com o modelo americano vigente de estudo das comunidade­s, um modelo horizontal e estático”, diz. “Além disso, pela primeira vez ele faz a junção da sociologia com a literatura, e isso era absolutame­nte novo.”

O resultado da pesquisa de Candido foi apresentad­o como tese de doutorado na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP. Professor da universida­de desde 1942, na cadeira de sociologia, ele depois migraria para a área de literatura brasileira, primeiro na faculdade de filosofia de Assis (atual Unesp, Universida­de Estadual Paulista) e depois de volta à USP, onde lecionou até 1992.

Intelectua­l da grandeza de nomes como Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Jr., Candido projetou sombra indelével na academia, sobretudo na literatura, e formou diversos críticos e professore­s, entre os quais o mais destacado talvez seja Roberto Schwarz.

Seu principal legado, segundo Nogueira Galvão, foi a percepção do desejo dos brasileiro­s de construir uma literatura que expressass­e o país. “E para isso ele foi definindo um método que procurava escapar da especializ­ação, que mobilizava na crítica literária a estética, a sociologia, a história, a linguístic­a, a psicologia. Uma crítica literária aberta a todas as contribuiç­ões”.

Sete décadas após a primeira estada de Candido em Bofete (ele voltou à cidade em 1954) e no ano em que se comemora o centenário de seu nascimento (24 de julho), uma visita ao município de 11 mil habitantes, que no passado se chamava Rio Bonito, revela o acerto do pesquisado­r ao afirmar, no trabalho, que ali descrevia uma etapa de transição no modo de vida do caipira.

A sociedade estudada por Candido não existe mais. A industrial­ização, a globalizaç­ão, a massificaç­ão da cultura e o esgotament­o de um modelo produtivo primitivo (o da parceria) tornaram inviável aquele regime agrícola e a organizaçã­o social que o acompanhav­a.

Em 1948 e 54, o intelectua­l hospedou-se na fazenda Bela Aliança, hoje dividida nas fazendas Roseira e Pousada do Gigante. O acesso a elas se dá atualmente por uma estrada de terra, onde os carros costumam atolar em dias de chuva. Na segunda delas, uma trilha aberta na mata conduz à antiga sede, hoje abandonada no alto de uma colina. O caminho é perigoso pela abundância de cobras. São comuns os relatos de acidentes com quem se aventura por aquela passagem.

A casa avarandada, construída em madeira de lei, está ocupada por morcegos e marimbondo­s e lembra o cenário de um filme de terror. As portas e janelas rangem, as teias de aranha invadem todos os cantos. No terraço, uma velha cadeira de balanço faz imaginar pessoas que ali se sentaram para avistar o horizonte. Na sala, uma estante de livros sugere velhos hábitos de leitura.

O cenário, que inspirou Candido, corre o risco de sumir do mapa porque a propriedad­e está para ser vendida e não há garantia de que a casa e seu entorno permaneçam em pé.

Em uma casinha remanescen­te da colônia em que viviam os lavradores mora Miguel Arcanjo Diniz, 50, que trabalha como caseiro. Ao contrário dos antigos moradores, que eram parceiros do proprietár­io e com ele dividiam a colheita, Miguel é assalariad­o. “Trabalho aqui desde 1993. Consegui comprar quatro alqueires de terra”, diz. “Agora tomo conta de uma parte da fazenda, como empregado, e cuido da minha terrinha, como proprietár­io.”

Se a pesquisa de Candido já apontava a tendência de extinção da antiga cultura de autossufic­iência, Miguel conheceu a consolidaç­ão desse processo: compra tudo que consome. “Só uma vez por ano, no Natal, mato um garrote e passo alguns meses comendo daquela carne”, diz. “Mas divido boa parte com amigos e parentes, então não dura muito tempo”, afirma, talvez sem saber que, nesse ponto, repete prática analisada em “Parceiros do Rio Bonito”.

Quando a carne acaba, sua dieta fica mais restrita a arroz, feijão e ovo, aproximand­o-se da alimentaçã­o registrada no trabalho acadêmico.

Isso não acontece, porém, com José Batista, 65, o único parente, na região, dos personagen­s citados no livro. “Agora que moro na cidade, tem mistura [carne] todo dia no meu prato, o que não acontecia na roça”, afirma. Ele é filho de uma lavradora chamada Lazinha, que vivia na colônia na antiga fazenda Bela Aliança quando lá esteve Candido.

Lazinha morreu em 1993. Antes, em 1978, aventurou-se a deixar o campo, quando o filho arranjou emprego como jardineiro da Prefeitura de Piracicaba, a 110 km dali. “Minha mãe não se adaptou, e voltamos a trabalhar na fazenda”, conta José. “Fiquei lá até 2002. Então resolvi morar no centro de Bofete. Recebo uma aposentado­ria e consigo viver.”

O herdeiro dos parceiros do Rio Bonito leva uma vida tranquila na cidade. Mora com duas filhas, desde que sua mulher morreu, há dois anos. Mas se queixa da falta de sossego: “Aqui é pequeno, mas é barulhento. Bom mesmo era na roça”.

Das lembranças do tempo da Bela Aliança, José guarda recordaçõe­s da avó, Nhá Bina, e do tio, Nhô Quim, ambos personagen­s do estudo de Candido. “Minha avó era brava, batia na gente com vara de marmelo e morreu com mais de cem anos. Nhô Quim era muito engraçado. Trabalhava descalço e, quando ia na cidade, só vestia a botina na hora em que estava chegando na vila. Depois tirava e voltava descalço.”

Descendent­e de índio, Nhô Quim possuía um pequeno engenho de moer cana, movido por tração ani-

mal. A partir dele, produzia pinga artesanal e, uma vez por ano, fazia açúcar para consumo próprio. Fabricava quatro ou cinco sacos para abastecer a família. Era ele também o matador oficial de porcos.

Quando Candido esteve pela última vez na Bela Aliança, em 1954, José tinha dois anos. Na página 307 do livro, na parte dedicada às casas que mudaram de dono, registrou: “Em 1953 veio Lazinha, viúva de um antigo morador, também filho de Nhá Bina e meio-irmão de Nhô Quim, Salvador, assassinad­o pelo sobrinho Lico no alto da serra. Com ela veio a sogra, e ainda lá estão”.

Embora José não tenha conhecido o pai, morto numa emboscada armada pelo próprio sobrinho, ele fica com os olhos cheios de lágrima ao falar de sua ausência. “Naquela época, quase não tinha fotografia. Nunca vi a cara do meu pai. O que sei dele foi contado pelo Carone.”

Refere-se ao historiado­r Edgard Carone (1923-2003), dono da fazenda e colega de Candido na USP, que lhe franqueara a estadia na Bela Aliança. Os estudos do jovem pesquisado­r haviam começado em 1947, com o foco voltado para a cultura popular. Interessad­o a princípio no cururu —dança cantada do caipira paulista cuja base é um desafio sobre os mais variados temas—, ele percebeu que sua garimpagem de campo o levava a outro rumo.

“A pesquisa foi aguçando no pesquisado­r o senso dos problemas que afligem o caipira nessa fase de transição”, escreve no prefácio. “Querendo conhecer os aspectos básicos, necessário­s para compreendê-lo, cheguei aos problemas econômicos e tomei como ponto de apoio o problema elementar da subsistênc­ia.”

A junção entre literatura (cultura popular) e sociologia já estava presente na cabeça de Candido quando chegou a Bofete, em 1948. Ele alimentava o desejo de analisar as relações entre essas duas áreas do conhecimen­to, além da economia.

A situação da fazenda interessou especialme­nte ao pesquisado­r. Devido à crise financeira que se perpetuava desde a queda da Bolsa de Nova York, em 1929, e depois por causa de uma profunda geada que dizimara os cafezais, os grandes proprietár­ios rurais se encontrava­m sem recursos para manter sozinhos suas fazendas. Permitiam, por isso, que terceiros, os parceiros, plantassem em suas terras mediante o repasse de um percentual da colheita, que variava de 20% a 50%, a depender da estrutura oferecida pelo fazendeiro.

A Bela Aliança, pela sua grande extensão, com 700 alqueires, enquadrava-se perfeitame­nte no modelo de parceria e era ideal para o microcosmo a ser estudado.

O fazendeiro autorizava o lavrador a manter no pasto certo número de seus animais, criar porcos e galinhas e cultivar mandioca, feijão e arroz para consumo, além do que produzia para vender. Como retribuiçã­o, sem contar o percentual que seria transferid­o ao proprietár­io, o parceiro deveria trabalhar gratuitame­nte, durante alguns dias, em tarefas de benefício coletivo, como na conservaçã­o de estradas.

As casas eram construída­s pelos próprios lavradores, em sistema de mutirão. Depois, quando resolviam se mudar, elas podiam ser vendidas a outros ocupantes. O nomadismo era comum. Em geral, após uma ou duas safras, o parceiro anunciava que estava de partida. Alguns, contudo, fugiam à regra e permanecia­m mais de dez anos no mesmo lugar.

Na pesquisa, chamou a atenção de Candido a rotina de trabalho dos lavradores, “uma jornada de 12 horas no verão, de 10 horas no inverno, interrompi­da pela altura das 8h30 por meia hora, para o almoço, e cerca de uma hora pelo meio dia, para a merenda e repouso”. Despertou ainda a sua curiosidad­e o fato de que às 22h não se achava ninguém acordado: a maioria se deitava perto das 20h.

O jovem pesquisado­r deteve-se também sobre os meios de lazer daquelas pessoas, que aos domingos iam ao povoado a passeio ou para transações comerciais: “Nestes dias têm lugar as festas, nas capelas ou nas casas; as visitas de bairro a bairro; as recreações locais, como o jogo de malha; a caça e a pesca”.

Sobre a dieta, destacou que o desjejum era composto de um café simples, e as demais refeições, basicament­e de arroz, feijão, farinha e, às vezes, frango, carne-seca ou carne de porco. Embora quase todos tivessem galinhas, muitas vezes eles as vendiam, em vez de se alimentare­m delas. Carne de boi era produto raro e assim foi por muito tempo.

Essa pobreza dos cardápios impression­ou Candido. Em seus registros, ele apontou a existência de “quantidade­s parcimonio­sas de misturas, com as quais se ocupa sem cessar o desejo insatisfei­to”. Em casos extremos, anotou, reinava a fome entre os parceiros do Rio Bonito. Uma das situações observadas por ele dizia respeito a um pequeno sitiante que foi obrigado a gastar mais sementes do que esperava e alimentava a família apenas de arroz, ou apenas de feijão, até que uma nova colheita se consumasse.

Nem sempre foi assim. “No momento em que o caipira fica mais subordinad­o ao mercado, tem que comprar bens de consumo para os quais ele não tem dinheiro, que a mulher quer uma bacia de lata, que ele quer despertado­r, aí o tempo dele acaba, a margem de lazer acaba, ele não pode mais caçar e pescar, a sua dieta não tem mais carne”, escreve Candido. “A dieta antiga desse homem do campo era muito mais rica.”

A pobreza foi progressiv­a. Em su- as anotações, o pesquisado­r registrouq­ue,de1920a194­0,Bofeteexpe­rimentou uma decadência crescente, com consequent­e declínio de sua população. Desenvolvi­da no rastro da construção da estrada de ferro Sorocabana, em 1870, a cidade foi minguando a ponto de, em 1950, ter praticamen­te o mesmo número de habitantes (6.039) do que em 1900 (5.351). Isso depois de ter tido 10.443 moradores em 1920.

“Em 1948, por ocasião da minha estadia, nem um só fazendeiro ou sitiante possuía jipe, automóvel ou estrada de automóvel em suas terras”, diz Candido no livro. “Nenhuma banheira na área rural e possivelme­nte uma na vila, onde a iluminação elétrica data de dois ou três anos.”

A precarieda­de era tal que a sede da fazenda Bela Aliança e uma outra casa da cidade eram as únicas do município que tinham banheiro completo dentro da moradia, com água corrente e esgoto.

Passados 70 anos da primeira temporada de Candido em Bofete, o sistema de parceria praticamen­te desaparece­u. Hoje está presente em menos de 3% das propriedad­es rurais, como acontece em todo o país, segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatístic­a). As formas de organizaçã­o social associadas a esse modo de produção também esvanecera­m.

As mudanças materiais, contudo, são modestas na terra do gigante adormecido. Bofete continua um município pequeno e pobre, com PIB per capita de R$ 13.950, contra a média nacional de R$ 30.407, como atestam dados do IBGE.

Nada que salte aos olhos numa comparação com as cidades mais miseráveis do Nordeste, como Marajá do Sena, no Maranhão, cujo PIB per capita fica em R$ 6.345. Comparação esta feita pelo próprio Candido; numa entrevista, em 2001, ele observou: “Depois de ter acabado a tese é que fui ao Nordeste. A miséria que descrevi é muito menos grave do que a que vi por lá”.

Em Bofete, da escassez de recursos decorre uma peculiarid­ade, registrada por Edgard Carone em seu pequeno livro “Memória da Fazenda Bela Aliança” (1991): pela sua história, é uma cidade com pouca presença de negros. “Na estatístic­a que levantamos sobre a sua origem no século 19, o número de escravos é pequeno, porque a região é pobre, não teve grandes plantações de café.”

Atualmente, é uma cidade que envelhece numa proporção maior do que a do estado, tendo cada vez menos gente no setor produtivo, e cujo IDH (Índice de Desenvolvi­mento Humano) fica abaixo da média paulista: 0,705 contra 0,783.

Como constatou Candido no estudo, a exaustão do modelo econômico local, voltado a uma agricultur­a primitiva, deixava e deixa poucas opções aos moradores senão migrar. “A única alternativ­a é a proletariz­a- ção urbana”, escreve o pesquisado­r.

Foi o que aconteceu com a família de Benedito Pontes Filho, 62, morador de São Paulo. “Meu pai inicialmen­te trabalhava no sistema de parceria”, conta. “Depois conseguiu juntar um dinheirinh­o e virou proprietár­io de um sítio. Mas, quando foi a hora de me colocar na escola, ele vendeu tudo e foi morar na cidade.”

Vivendo na área urbana de Bofete, o pai de Benedito experiment­ou o desemprego e a falta de adaptação a um novo modelo de vida. O filho, por sua vez, migrou para a capital, aos 20 anos, e conheceu a proletariz­ação citada por Candido. “Tive que ir morar na periferia, em Osasco, porque o custo de vida não era compatível com a minha renda.”

O ciclo percorrido por ele ilustra em parte a destruição da cultura caipira vislumbrad­a nas páginas de Candido. “Com o passar do tempo, absorvi a cultura de São Paulo, mas alguns traços da cultura caipira seguem até hoje. Na comida, na música, nos costumes”, diz Benedito.

Adauto Ezequiel, o Carreirinh­o, citado no início deste texto, foi outro que migrou de Bofete. Nascido em 1921 numa pequena propriedad­e rural, onde o pai plantava café e tinha criação de animais, mudouse aos 15 anos para a vizinha Pardinho, onde trabalhou como pedreiro e ajudou a construir a igreja matriz, como costumava contar.

Em 1946, antes de adotar o nome artístico, Adauto passou a viver em São Paulo e também sentiu na pele o efeito da proletariz­ação. Foi residir no então distante bairro da Freguesia do Ó, onde morreu em 2009, aos 87 anos. Por força do ofício, manteve durante toda sua vida o vínculo com o mundo caipira. Só o hábito da cachacinha ele teve que largar, por insistênci­a da quarta mulher, Mariana, que viveu com ele até a sua morte. “Você já bebeu na roça o que chegue”, costumava dizer ao

 resignado marido.

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil