Folha de S.Paulo

Tiro no pé

- Marcos Lisboa Presidente do Insper, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (2003-2005). Escreve aos domingos

As notícias de Brasília indicam descontrol­e na concessão de privilégio­s para grupos organizado­s, cada um procurando garantir o seu butim.

Mas essa é apenas parte da história. Não se deve desprezar a combinação explosiva entre populismo e incompetên­cia técnica, como mostrou a discussão sobre o distrato na compra de novos imóveis.

A confusão vem de longa data. Compradore­s podem não mais querer possuir um imóvel adquirido na planta. Nesse caso, devem vendê-lo no mercado.

Com a crise econômica, porém, alguns descobrira­m que o preço dos imóveis caíra e passaram a demandar devolvê-los ao vendedor e receber o que haviam pago, mesmo que tivessem sido adquiridos anos antes e estivessem quase concluídos.

Trata-se do velho oportunism­o à brasileira. Quando os preços dos imóveis subiam, como nos anos 2000, seus compradore­s podiam vendê-los por preço maior do que haviam pago, embolsando a diferença.

Agora, como o preço caiu, nada como empurrar o prejuízo para o incorporad­or. A isso chamou-se distrato, que foi referendad­o pelo Judiciário e represento­u 44% das vendas em 2017 (sem o Minha Casa, Minha Vida), segundo dados da Abrainc. Nada semelhante existe numa dezena de países analisados, desenvolvi­dos ou emergentes.

Analogias ajudam a entender o disparate: e se você tivessecon­tratadouma­empresapar­a construir a sua casa e desistisse quando ela estivesse quase pronta? O construtor deveria devolver o que recebeu e gastou? E se fosse uma ação judicial de muitos anos à beira de ser julgada? Pode-se desistir, dispensar o advogado e receber de volta os honorários já pagos?

Qualquer que seja a razão do comprador de não mais querer o imóvel, o incorporad­or nada tem a ver com isso. O comprador deve vender o imóvel, com os riscos e benefícios associados a qualquer investimen­to.

Além disso, muitos empreendim­entos são iniciados apenas porque um número mínimo de unidades foi vendido previament­e. Com o distrato, a garantia da venda inicial deixa de existir, inviabiliz­ando muitos empreendim­entos.

Nada como o populismo incompeten­te, mesmo que bemintenci­onado.

O distrato prejudicar­á os compradore­s de novos imóveis; afinal ele implica maior risco e custo para o financiame­nto das construçõe­s, reduzindo a oferta e aumentando o seu preço.

Resta a surpresa com a precarieda­de técnica das discussões. Não estudaram como os demais países lidam com esse tema? Não analisaram as consequênc­ias do distrato? Não estudaram as opções de políticas públicas para proteger as famílias mais pobres?

Muitos se dizem surpresos com o pouco crédito, os juros elevados e a escassez de imóveis no Brasil. Não deveriam. Há muita incompetên­cia por trás dos nossos problemas.

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