Folha de S.Paulo

No outro lado da parede

- Ruy Castro

Sim, fez 60 anos na terça-feira (10) que João Gilberto gravou o 78 r.p.m. com “Chega de Saudade”, no lado A, e “Bim-Bom”, no lado B, instaurand­o uma nova música que seria chamada de bossa nova. Isso aconteceu no quarto andar de um edifício da avenida Rio Branco, no centro do Rio, defronte à Cinelândia, chamado São Borja. Era lá que ficava o estúdio da Odeon, selo em atividade no Brasil desde 1904 e o mais importante da nossa história fonográfic­a.

A Odeon, originalme­nte na rua do Mercado, perto da praça 15, mudarase para o edifício São Borja naquele próprio ano de 1958. Em poucos meses, passariam por seus microfones no novo endereço todos os grandes nomes, de Dorival Caymmi, Elza Soares e Lucio Alves até Moreira da Silva, o Trio Iraquitã e, acredite, Nat “King” Cole —que, em turnê pelo Brasil, gravaria lá em dueto com Sylvinha Telles. Mas não eram estes os únicos grandes nomes no São Borja.

O edifício ficava a cem metros do Monroe, o palácio em estilo eclético onde funcionava o Senado Federal. O Rio era a capital da República e, ao contrário do que aconteceri­a em Brasília, todos os políticos moravam aqui com suas famílias. Por isso, se eles quisessem alguma distração fora de casa, teria de ser em dias de semana e perto do trabalho. E, ali, bem à mão, numa época sem motéis, estava o São Borja. Tantos senadores alugaram nele pequenos apartament­os para servir de “garçonnièr­e” —lugar onde levar a namorada— que ele era chamado de “Senadinho”.

Portanto, não é impossível que, enquanto João Gilberto cantava “Vai, minha tristeza, e diz a ela/ Que sem ela não pode ser...” ou “É só isso o meu baião/ E não tem mais nada, não...”, os ruídos mais expressivo­s e empolgados estivessem sendo produzidos no outro lado da parede. E, se João Gilberto os escutou, eles podem tê-lo inspirado.

Afinal, tanto quanto a bossa nova, aquilo era muito natural.

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