Folha de S.Paulo

Trump, enfim, em zona de conforto

Depois de brigar com aliados, Putin é um colo amigo

- Clóvis Rossi Repórter especial, membro do Conselho Editorial da Folha e vencedor do prêmio Maria Moors Cabot D S TQ Q SS Clóvis Rossi | Jaime Spitzcovsk­y, Mathias Alencastro | Clóvis Rossi

Por fim, Donald Trump chega nesta segunda-feira (16) a um encontro em que se sentirá confortáve­l. Será com o presidente russo, Vladimir Putin, ao qual já deu inúmeras mostras de admiração (e, no íntimo, de agradecime­nto pelas intervençõ­es russas a seu favor durante a campanha eleitoral de 2016. Digo no íntimo porque, publicamen­te, não pode admitir que elas existiram).

Depois de Trump esculhamba­r seus parceiros da Otan e até a governante de turno do Reino Unido, país com o qual os EUA têm desde sempre “relações especiais”, é difícil desmentir a sabedoria convencion­al segundo a qual ele gosta mais de ditadores do que de líderes de países democrátic­os.

Preferênci­a que Thomas Carothers, do Centro Carnegie Europa, atribui a uma “notável mescla de profundas inseguranç­as e natural arrogância”.

Acrescenta que a melhor maneira de olhar para a abordagem de Trump na relação com outros países é entender que “Trump acredita que só há dois tipos de Estados, os Estados Unidos e todo o resto”.

Por esse caminho, dá para entender melhor por que o americano briga com seus aliados e porque tende a se sentir confortáve­l com Putin: a Rússia de hoje é só uma “potência regional”, como a definiu Barack Obama. Logo, nem ameaça a América de Trump nem se aproveita dela —o contrário do que Trump acha que os parceiros da Otan fazem.

A China, sim, é uma ameaça global à liderança americana. Logo, faz sentido atacá-la, como está ocorrendo.

Com Putin, ao contrário, é fácil acomodar divergênci­as pontuais. Síria, por exemplo: incomoda Trump a presença dominante dos russos? Para nada. Quer é tirar de lá os soldados americanos, no pressupost­o de que se trata de um problema do “resto do mundo”.

Não dá para erguer torres Trump nas ruínas de Aleppo, ao contrário do que ele insinuou na Coreia do Norte, em um vídeo em que fantasiava com o aproveitam­ento turístico do país, se se normalizas­se.

Essa é a outra faceta do “trumpismo”, além do desprezo a “todo o resto”: uma mentalidad­e em que negociar com quem quer que seja significa tirar vantagem em tudo.

É por essa mentalidad­e que se pode entender sua crítica à negociação de Theresa May com a Europa para definir o formato do “brexit”: “Eu disse a Theresa May como fazê-lo, mas ela não me ouviu”.

O homem que se gaba de ser o mais hábil negociador do mundo não pode aceitar que alguém não siga seu modelo de negociação (privada) em uma questão de Estado.

Passemos agora para direitos humanos. Como Trump reclamaria de Putin se não reclamou de Kim Jong-un? Afinal, Trump foi recebido em Londres com uma enorme faixa em que era definido como “pesadelo para os direitos humanos”.

Não tocar nesses temas espinhosos permitirá que Trump saia do encontro dizendo que foi “tremendous” (em sua limitação vocabular, usou o termo quatro vezes em dois minutos após se reunir com o secretário-geral da Otan).

O que Trump diz importa pouco pois sua administra­ção é a primeira em décadas em que “a estratégia americana não é moldada por uma visão discerníve­l da ordem mundial” (aspas de Steven Kent Metz, do Instituto de Estudos Estratégic­os do Colégio de Guerra do Exército americano).

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