Folha de S.Paulo

Possível exumação de ditador espanhol de basílica causa alvoroço

Premiê promete retirar ossada de Franco de monumento; local também abriga cadáveres de opositores do caudilho

- Diogo Bercito

Finda a missa, uma longa fila se forma na direção do altar, já não mais para receber a comunhão, mas para prestar homenagem a um túmulo. Uma senhora vestida de vermelho ergue o braço em saudação fascista, imitada por duas crianças. Abaixo está o corpo de Francisco Franco (18921975), ex-ditador espanhol.

A Folha acompanhou esse concorrido ritual de domingo, dia em que simpatizan­tes do líder costumam saudá-lo em sua tumba no Vale dos Caídos, 60 quilômetro­s ao noroeste de Madri.

Essa tradição, no entanto, pode ser interrompi­da. O socialista Pedro Sánchez, recémempos­sado premiê espanhol, prometeu retirar o caudilho de seu sepulcro monumental até o final de julho.

Há uma década se fala em exumar Franco, símbolo da ditadura que se estendeu de 1939 a 1975. Mas os planos, articulado­s pelo governo socialista de José Luís Rodríguez Zapatero (2004-11), foram abandonado­s pelo conservado­r Mariano Rajoy (2011-18).

Sánchez assumiu o poder em maio e quer estabelece­r a sua marca desde o início do mandato. É possível que force a exumação de Franco com uma ordem executiva, evitando um voto no Parlamento.

Mas o cadáver do ditador, que poderia ser levado ao jazigo familiar, não é a única questão a resolver. Estão enterrados no vale mais de 30 mil combatente­s da Guerra Civil Espanhola (1936-39). Há os corpos dos soldados que lutaram ao lado de Franco (nacionalis­tas) mas também os de seus opositores (republican­os) —o que muitas famílias até há pouco ignoravam.

Como boa parte dos corpos foi retirada de valas comuns, não há informaçõe­s precisas sobre quem está de fato sepultado por ali.

Ao menos sete famílias exigem que o governo permita a identifica­ção e exumação de seus parentes. O advogado delas, Eduardo Ranz, foi nomeado recentemen­te assessor do Ministério da Justiça para questões de memória histórica.

À reportagem ele diz que os trabalhos no vale podem começar ainda neste mês, em paralelo à exumação de Franco. “É algo fundamenta­l. Essas famílias passaram os últimos 60 anos levando flores a túmulos vazios”, diz.

Sagrario Fortea, 62, é uma das envolvidas no processo. Pede a exumação do avô Manuel Herrero, morto em 1936 e enterrado em uma fossa comum. Seu corpo foi levado ao vale em 1959 —algo que a família só soube recentemen­te.

“Devo isso à minha mãe e aos meus tios, que já morreram”, ela conta. “Faço isso também por um sentimento de justiça. Busco a verdade, que ainda não foi contada.”

O Vale dos Caídos começou a ser erguido em 1941. A igreja, escavada na montanha, foi obra de 20 mil homens, grande parte deles prisioneir­os po- líticos. Foi finalizada com uma cruz de 130 metros de altura.

As ossadas dos combatente­s foram postas secretamen­te nas laterais. Quando as famílias passaram a clamar pela exumação dos corpos, há uma década, ouviram que danos estruturai­s e infiltraçõ­es impediam o acesso aos recintos. Um parecer técnico, porém, avalizou o procedimen­to.

“É um monumento fascista em glória a um assassino. É incrível que, na Europa do século 21, isso seja permitido”, diz Miguel Angel Capapé, diretor da Associação de Recuperaçã­o e Investigaç­ão contra o Esquecimen­to. Ele é marido de Purificaci­ón Lapeña, cujo avô, Manuel Lapeña, está ali —é outro republican­o que pode ser desenterra­do em breve.

Capapé conta que, na última década, exauriu todas as ações legais sem ver avanços em sua demanda. Relaciona a aceleração do processo à chegada de Sánchez ao poder. “Sempre soubemos que isso só poderia ser feito quando houvesse vontade política.”

Ele espera que, além da retirada dos restos de Franco dali e da possibilid­ade de os parentes dos mortos removerem suas ossadas, o governo ressignifi­que o monumento e tire dele o caráter religioso. “A cruz precisa ser removida. É algo que vemos de longe, com uma mensagem forte.”

A basílica do Vale dos Caídos é controlada por monges beneditino­s, contrários à alteração da vocação do local. Após as saudações fascistas ao túmulo, um padre se aproximou para benzê-lo com água.

O templo é adornado com oito tapetes pendurados nas paredes, cópias de obras trazidas da Bélgica no século 16. São desenhos de cenas do Apocalipse, retratando dragões e bestas multifacet­adas.

“A igreja é uma parte importante do problema e nunca nos ajudou”, diz Capapé.

No que pode ser seu último ato de resistênci­a, os simpatizan­tes de Franco marcham neste domingo (15) para protestar contra os planos de exumar o caudilho e dessacrali­zar seu monumento.

A manifestaç­ão foi convocada pelo Movimento pela Espanha com o mote “no vale não

se toca”. Militantes virão ônibus de todo o país.

“O povo espanhol não vai tolerar isso”, diz Pilar Gutiérrez, 64, líder do grupo. “O Vale dos Caídos é um patrimônio nacional, e Franco é o herói de metade dos espanhóis. É um roubo, um espólio, uma profanação. Algo que está proibido em todo o mundo, exceto pelo Taleban e pelo Estado Islâmico”, diz, citando organizaçõ­es terrorista­s.

Para Gutiérrez, o monumento é um dos principais símbolos do século 20 espanhol. Caso o exemplo de retirar imagens religiosas seja replicado, “logo vão querer remover o Cristo do Rio”.

A basílica, a cruz e a tumba de Franco, afirma ela, são casos únicos em que ambos os lados de uma guerra civil foram honrados, ao serem enterrados juntos. “Foi assim que ele conseguiu a reconcilia­ção da Espanha, mas seus inimigos querem rompê-la.”

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Oscar del Pozo -3.jul.2018/AFP Fachada do monumento conhecido como Vale dos Caídos

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