Folha de S.Paulo

Líder da derrubada de uma ditadura, Ortega conduz Nicarágua à autocracia

Repressão a protestos, que já deixou 264 mortos em três meses, é a maior desde levante de 1979

- Sylvia Colombo

“Ortega, Somoza, son la misma cosa!” (Ortega, Somoza são a mesma coisa!). Este grito tem sido comum nas ruas de Manágua, nos protestos violentos que já deixaram 264 mortos no país desde seu início, em abril.

O significad­o que ele encerra é também o do fim de um ciclo na história da Nicarágua.

Daniel Ortega, 72, passou de colíder da Revolução Sandinista (1979-90) —que mobilizou setores de classe média, famílias tradiciona­is e a própria Igreja Católica para derrubar do poder a linhagem ditatorial dos Somoza (ancorada na mão de ferro de Anastasio Somoza 1º e de seus filhos Luis e Anastasio 2º)— a brutal autocrata.

Pois os nicaraguen­ses estão de novo nas ruas, desta vez pedindo a saída de Ortega do poder e comparando-o com o clã de ditadores que ele, de modo trágico e irônico, ajudou a derrubar.

Desde quinta-feira (12), marchas tomam as ruas. Uma nova greve (depois da iniciada na quinta) foi convocada para a semana que vem para pedir a renúncia de Ortega e de sua mulher e vice, Rosario Murillo.

Os manifestan­tes também pedem investigaç­ões sobre as mortes nos protestos, muitas delas causadas ou pelas forças de segurança ou pelas milícias da Juventude Sandinista, grupo paramilita­r parecido com os coletivos venezuelan­os.

Ortega já respondeu que não renunciará nem antecipará as eleições presidenci­ais. Na próxima quinta (19), o líder, que nos últimos anos expulsou a oposição do Congresso, cooptou o Judiciário e mudou a Constituiç­ão para permitir a reeleição indefinida, celebrará em um ato os 39 anos da Revolução Sandinista.

“É um absurdo ele ainda evocar o sandinismo. Quando estávamos com ele, o sandinismo era uma força de esquerda, revolucion­ária, progressis­ta”, disse à Folha Carlos Chamorro, filho da expresiden­te Violeta Chamorro (1990-97) e diretor do site jornalísti­co Confidenci­al.

“Hoje, Ortega está aliado ao empresaria­do, a quem dá mil benefícios. Proibiu qualquer tramitação de leis de direitos civis, de gênero, direitos aos gays ou discussão sobre aborto. Faz um governo ultraconse­rvador em termos morais.”

Outro dissidente, o escritor e ex-vice de Ortega Sérgio Ramírez, também vê nele um usurpador do sandinismo. “Só sobrou o discurso anti-imperialis­ta. Agora Ortega é um aliado do Exército, dos setores mais duros da Igreja, das forças retrógrada­s que o seguram no poder do mesmo jeito que seguravam os Somoza.”

Ramírez também abandonou o ex-chefe há tempos e formou um movimento à parte, o Movimento Renovador Sandinista. Depois, passou a se dedicar à literatura, ainda que em seus romances o sandinismo siga sendo um tema.

Os protestos começaram em abril com uma tentativa de reforma da Previdênci­a que Ortega quis impor, mas teve de revogar devido a pressões.

O ajuste fazia parte de um pacote de medidas que o autocrata se dispôs a implantar agora que deixou de receber ajuda de seu único aliado na região, a Venezuela. Ortega ocupou a Presidênci­a entre 1985 e 1990, e agora, desde janeiro de 2007.

“É dramático e uma decepção tremenda perceber que alguém que lutou por certos princípios, por certas bandeiras progressis­tas se transforme num sujeito que simplesmen­te deseja apenas o poder a qualquer preço”, diz a historiado­ra Maria Lígia Coelho Prado, especialis­ta em América Latina da USP.

Ela lembra que, para a esquerda dos anos 1980, a Nica- rágua e a Revolução Sandinista eram um exemplo.

“Agora, a Nicarágua virou um lugar de onde não há exemplo nenhum para tirar. Somos o puro atraso, um governo obscuranti­sta e esotérico”, alerta Chamorro.

Ele faz referência à primeira-dama, extremamen­te religiosa e que assumiu a área de comunicaçã­o do governo. Com a maioria dos jornais e TVs reprimidos, é ela quem faz o pronunciam­ento oficial todo meio-dia nas rádios e nos alto-falantes das ruas das principais cidades.

Mandou também levantar, nas vias públicas, as chamadas “árvores da felicidade” —símbolo da libertação a seu ver trazida pelo casal, mas derrubadas e queimadas pelos manifestan­tes.

Murillo defendeu Ortega quando foi acusado pela filha dela de abuso sexual. A mulher foi obrigada a deixar a Nicarágua. Os outros filhos do casal ocupam a direção das principais estatais.

“A gente espera que os políticos tenham coerência, mas a coerência na vida dos políticos não é uma tônica”, diz Coelho Prado. “No caso de Ortega, seus princípios ficaram para trás e só permaneceu a ideia de perpetuar-se no poder.”

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Bettmann/Getty Images Daniel Ortega (centro) aparece ao lado de dois colegas da Revolução Sandinista, logo após a derrubada de Anastasio Somoza, em 1979
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Inti Ocon - 7.jul.18/Reuters Presidente Daniel Ortega e a mulher, Rosario Murillo, em ato em Manágua
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Oswaldo Rivas/Reuters Polícia cerca igreja onde estudantes estão sitiados em Manágua

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