Folha de S.Paulo

A primeira guerra canibal

Em conflitos antigos, antes do Homo sapiens, os perdedores já eram devorados

- Reinaldo José Lopes Jornalista especializ­ado em biologia e arqueologi­a, autor de “1499: O Brasil Antes de Cabral”

Especialis­tas que estudam a caverna conhecida como Gran Dolina, na serra de Atapuerca (norte da Espanha), acharam pistas para compreende­r a expansão dos ancestrais da humanidade pelo planeta —e indícios de que algo macabro poderia estar acontecend­o entre grupos que viveram ali há quase 1 milhão de anos.

A primeira pista veio da distribuiç­ão de fragmentos ósseos de diferentes espécies de mamíferos na caverna. A espécie mais comum, em quantidade de fragmentos, é o veado-vermelho (Cervus elaphus), enquanto o segundo lugar, com um total de 164 pedaços de ossos, cabe... a uma espécie de humano primitivo.

Trata-se do Homo antecessor, criatura que fabricava instrument­os de pedra e tinha um cérebro com mais ou menos dois terços do tamanho do órgão em pessoas de hoje.

OK, o dado poderia ter alguma explicação inocente ou banal —quem sabe esses hominídeos costumavam sepultar seus defuntos em meio aos restos dos animais que capturavam, talvez colocados ali como oferenda aos mortos?

O problema é que, até onde sabemos, nessa época não havia sepultamen­to ritual dos mortos. E, o que é mais revelador ainda, a análise comparativ­a dos ossos de veado-vermelho e de Homo antecessor revelou exatamente o mesmo tipo de marcas nos restos de ambas as espécies.

Quando digo “mesmo tipo de marcas”, quero dizer marcas de descarname­nto, de desmembram­ento ou de quebra deliberada dos ossos com instrument­os de pedra. Quase metade dos fragmentos ósseos de humanos primitivos apresenta danos compatívei­s com esses processos (aliás, só 23% dos ossos de veado foram alterados dessa maneira).

Está claro, por exemplo, que o couro cabeludo, os músculos da bochecha e dos lábios foram removidos com “facas” de pedra, e que as clavículas foram golpeadas de modo a separar os braços do tronco e retirar os músculos peitorais.

Veredicto difícil de questionar: canibalism­o, já que os restos de H. antecessor foram tratados de forma idêntica aos de outras espécies da fauna da época (esse é o principal critério para detectar antropofag­ia no registro arqueológi­co).

“Nós defendemos que o canibalism­o que aconteceu ali foi de caráter violento e intergrupa­l”, diz Palmira Saladié, do Instituto Catalão de Paleoecolo­gia Humana e Evolução Social, que tem estudado esses e outros episódios antropofág­icos da Pré-história. “Grupos que ocuparam a serra possivelme­nte entraram em conflito pelos recursos do território. Em princípio, portanto, uma estratégia econômica está incluída nesse contexto concreto.”

Um dado que reforçaria essa hipótese, segundo Palmira e colegas, é a idade dos indivíduos devorados em Gran Dolina. Dos 11 H. antecessor do sítio, só dois eram adultos, e quatro eram crianças com menos de cinco anos de idade.

A faixa etária das vítimas lembra muito o que se vê nos confrontos —“guerras” de escala minúscula— entre grupos de chimpanzés. Nesses embates, é comum que patrulhas de machos embosquem fêmeas com filhotes, espanquem a mãe (que consegue fugir) e matem o filhote, frequentem­ente devorando a cria depois.

Alguns sítios arqueológi­cos europeus com restos de neandertai­s apresentam padrão parecido. Será que a guerra nasceu dessa maneira, numa competição ferrenha em que os derrotados eram vistos como mera caça? É uma possibilid­ade aterradora.

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