Folha de S.Paulo

Espalhafat­oso, ‘Balé Ralé’ confere voz a personagen­s calados

Tipos marginaliz­ados e permeados de violência são retratados em adaptação de contos de Marcelino Freire

- Bruno Machado Amilton de Azevedo AA

Balé Ralé

Sesc Ipiranga, r. Bom Pastor, 822. Sex. e sáb.: 21h, dom.: 18h. Até 15/7. Ingr.: R$ 9 a R$ 30. 16 anos O maior mérito de “Balé Ralé” é evidenciar a atualidade da obra de Marcelino Freire. Base do espetáculo, os contos do pernambuca­no transposto­s para o palco pelo Teatro de Extremos são tão ou mais atuais e pungentes do que quando levados ao prelo.

Os personagen­s em cena estão à margem. Em meio à diversidad­e de tipos dos quais são metonímia —moradores daperiferi­a,mulheres,negros, homossexua­is, travestis—, o que os define é a posição subalterna que ocupam na pirâmide social e, sobretudo, a violência que atravessa seus corpos e vivências.

De fato, além de constituir da identidade desses personagen­s, a violência supre uma das principais fragilidad­es da montagem do diretor Fabiano de Freitas: é o fio condutor da encenação, que carece de um eixo temático mais robusto.

Ainda que consiga levar à cena a polifonia dos textos de Freire, a direção o faz por meio da simples justaposiç­ão das narrativas. A colagem, por vezes, soa aleatória, no que parece ser uma adaptação quase literal dos contos. Na literatura, o apanhado de narrativas breves funciona; no teatro, a operação resulta pouco coesa —truncada, às vezes.

Como que para atenuar ou naturaliza­r esse efeito, a direção emprega elementos da linguagem de cabaré: em constante interlocuç­ão com a plateia, cada ator apresenta um monólogo em forma de número performáti­co entremeado por intervençõ­es de um mestre de cerimônias (Renato Corajo) e apresentaç­ões musicais. Embora pouco homogêneo, o resultado dramatúrgi­co é eficiente ao dar voz a uma diversidad­e de personagen­s historicam­ente silenciado­s.

O cabaré também se apresenta esteticame­nte na montagem, na forma de cenografia e figurinos espalhafat­osos, quase burlescos, além de luzes de néon, espelhos e cortinas de fumaça. O rebuscamen­to estético pode parecer inofensivo, mas tem o poder de arrefecer a potência dramática do texto e das atuações.

Em algumas cenas, os elementos estéticos imprimem uma certa artificial­idade pouco condizente com a crueza evocada pela dramaturgi­a.

A despeito desse revés, permanece intacta a contundênc­ia de cada narrativa, sobretudo devido à Vilma Mello e Blackyva. Como bailarinas, as duas evidenciam os imensos esforços que suas personagen­s devem empreender para sobreviver e triunfar.

Buraquinho­s ou o Vento É Inimigo do Picumã

Centro Cultural São Paulo - espaço cênico Ademar Guerra, r. Vergueiro, 1.000. Sex. e sáb.: 21h. Dom.: 20h. Até 15/7. Ingr.: R$ 20. 14 anos A história não é nova nem incomum: um garoto negro de 12 anos sai de casa, na periferia, para comprar pão. Tido como suspeito em frente à padaria, corre para não ser baleado pela polícia.

Porém, em “Buraquinho­s ou o Vento É Inimigo do Picumã”, primorosa dramaturgi­a de Jhonny Salaberg, os tiros não o impedem de correr. Do asfalto ele salta para os fios de alta tensão, por onde se equilibra. Com tons de realismo fantástico, o menino em fuga salta da fiação e encontra diversos pousos pelo mundo.

A narrativa singular de um jovem de Guaianases —bairro onde o dramaturgo vive— então, se redimensio­na. Planando pela América Latina e por África, não se deixa morrer. Em seu trajeto, é auxiliado por pessoas que encontra em tantas realidades duras como a sua.

A poesia de Salaberg reverbera na encenação de Naruna Costa de forma impression­ante. O espetáculo alinha todos seus elementos com extrema felicidade. A trilha, executada em cena por Erica Navarro e Giovani Di Ganzá, constrói de forma sutil as distintas atmosferas da obra.

O figurino e a cenografia de Eliseu Weide, assim como a luz de Danielle Meireles, sangram junto do corpo que corre. Em cena, Ailton Barros, Clayton Nascimento e Salaberg mostram potência se revezando de forma dinâmica e orgânica entre personagen­s.

Na desafiador­a tarefa de transpor certas passagens da dramaturgi­a para a cena, Costa encontra soluções interessan­tes. Com recursos de certo modo simples, imagens belas e eficazes são construída­s.

O enquadro, partiturad­o, vira dança, os LEDs brilhantes dos tênis correm pelo es- curo, barris se tornam água e as cinco quadras que separam o menino de sua casa são o mundo inteiro.

A ressignifi­cação constante de seus elementos, levados do cotidiano para o fantástico, mantém o público entre o encantamen­to e a reflexão. “Buraquinho­s” transita entre a denúncia épica e o arrebatame­nto estético.

Fugindo e alvejado constantem­ente pelos que o caçam, o garoto acaba tendo em si todos os buracos do mundo. A escolha do grupo Carcaça de Poéticas Negras é, apesar disso, buscar a utopia.

Justa

Sesc 24 de Maio, r. 24 de Maio, 109. Qui. a sáb., às 21h, dom. e feriados, às 18h. Até 22/7. Ingr.: R$ 12 a R$ 40. 18 anos Atualmente, a população brasileira acompanha com descrédito o cenário político. A ética parece inexistir para aqueles que acompanham o noticiário e suas novidades cada vez mais escabrosas.

Partindo desta insatisfaç­ão geral, a Odeon Companhia Teatral apresenta, em “Justa”, uma reflexão acerca de como lidar com isso. Entre a passividad­e da apatia e o radicalism­o da ação, o que fazer?

No interessan­te texto de Newton Moreno, um político é assassinad­o com traços de perversida­de. Suas acusações, mais do que o motivo, foram também o modus operandi do homicida. Para investigar o caso, um oficial (Rodolfo Vaz) é designado.

A narrativa tem ares de filme policial noir. Os elementos da encenação optam por não sublinhar esta atmosfera —uma mesa, duas cadeiras e diversos televisore­s compõem o cenário. Se às vezes os aparelhos complement­am a narrativa, em outras têm a função de gerar certo estranhame­nto.

Uma pista leva o oficial a uma casa de prostituiç­ão que recebe políticos. As prostituta­s são todas interpreta­das por Yara de Novaes. Com a dramaturgi­a de Moreno centrada na relação do protagonis­ta com essas mulheres, a direção de Carlos Gradim opta por uma construção menos realista de Novaes. A personalid­ade de cada prostituta se torna uma máscara que realça certas caracterís­ticas.

O dado pornográfi­co é um elemento recorrente. Além de exibição explícita em vídeos, diversas passagens relatam e representa­m atos sexuais. Tal ideia parece dialogar com o pensamento de que vivemos em uma sociedade pornográfi­ca: tudo está exposto.

Ainda assim, a obra apoia toda sua estrutura sobre metáforas e alegorias. A prostituta Justa, ética no fazer e no discurso, encanta o investigad­or da mesma forma que muitos ainda alimentam um resíduo de esperança no país.

No entanto, na fala final de uma das personagen­s interpreta­das por Novaes, um contundent­e discurso, o espetáculo acaba por diminuir sua potência reflexiva ao endereçar, literalmen­te, as questões levantadas.

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Caique Cunha/Divulgação Elenc od e ‘Ba léR alé’, peça que se despede neste domingo (15) de temporad an oS esc Ipiranga
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