Folha de S.Paulo

Otavio Frias Filho escreve sobre demagogos e tiranos

O líder populista deprecia a dimensão qualitativ­a da democracia

- Otavio Frias Filho Diretor de Redação da Folha, autor de “Queda Livre” e “Cinco Peças e Uma Farsa”.

Da avalanche de livros suscitados pela eleição de Donald Trump, talvez o que tenha obtido mais evidência, no campo da ampla frente crítica que se formou contra o presidente ultraconse­rvador, seja “Como as Democracia­s Morrem”, a ser lançado em breve pela Zahar no Brasil, dos cientistas políticos americanos Steven Levitsky e Daniel Ziblatt.

A partir de esquema concebido pelo espanhol Juan Linz nos anos 1970, a dupla estipula quatro requisitos presentes na atuação de líderes autoritári­os: 1) rejeição, por palavras ou atos, das regras do jogo; 2) negação de legitimida­de aos oponentes; 3) tolerância ou estímulo ao emprego da violência; 4) disposição para coibir as liberdades civis, em especial a de imprensa.

Segue-se a demonstraç­ão da tese, na forma de resumos bem feitos sobre a ascensão de uma série de tiranetes: Fujimori (Peru), Chávez/Maduro (Venezuela), Rafael Correa (Equador), Putin (Rússia), Erdogan (Turquia), Orbán (Hungria).

Também valem a leitura as excursões pela derrocada da democracia na Alemanha e na Espanha dos anos 1930, embora o conjunto exiba didatismo ao preço de incidir na superficia­lidade. Há pouco ou nenhum discernime­nto quanto às condições socioeconô­micas de cada situação.

A todo momento, os autores voltam, porém, à história americana. Embora reconheçam que a solidez das instituiçõ­es democrátic­as nos Estados Unidos é superior à da grande maioria dos países (e apesar de mostrarem que sempre houve muito, ali, do que chamamos de casuísmos legais e de manipulaçã­o eleitoral), a argumentaç­ão se concentra em persuadir o leitor de que Trump reúne os quatro requisitos expostos no início, o que não parece algo original ou difícil de comprovar.

Talvez a parte mais interessan­te do livro seja quando Levitsky e Ziblatt discorrem sobre como toda democracia dispõe de regras não escritas que sustentam as regras escritas. Para que um texto constituci­onal não seja letra morta, precisa estar enraizado num elenco de práticas compatívei­s com seu teor e compartilh­adas pela maioria dos atores políticos. Para que uma democracia seja mais que um cenário de opereta, precisa estar embebida numa cultura democratiz­ante que transcenda a política.

O que equivale a dizer, tomada a mesma questão sob outro ângulo, que a democracia tem duas dimensões: uma quantitati­va (deve prevalecer a vontade da maioria) e outra qualitativ­a (garantias individuai­s e direitos das minorias não podem ser suprimidos nem mesmo pelo desejo da maioria).

É próprio do líder populista, na teratológi­ca linhagem de déspotas que agora parece culminar com Trump, privilegia­r a primeira dimensão em detrimento da segunda.

Mas a popularida­de desses dirigentes, que mantêm vínculo direto e emocional com as massas, está sujeita, como a de qualquer governante, aos altos e baixos da economia internacio­nal, que são de natureza cíclica, quando não dependem da mera flutuação no preço de commoditie­s.

Logo a maioria se volta contra o líder que antes idolatrava —é então que se fecham Parlamento­s, censura-se a imprensa, caem as máscaras, enfim, e, nas palavras de Alexander Hamilton, um dos redatores da Constituiç­ão americana, “os que começaram como demagogos terminam como tiranos”.

Quase todo político seguirá essa trilha se as condições objetivas permitirem; raramente se trata de uma luta dos “bons” contra os “maus”, como gostam de acreditar as pessoas que reduzem o mundo a uma história em quadrinhos.

Há um conjunto de fatores a fomentar, na atualidade, a irrupção de lideranças populistas autoritári­as, espécie que se imaginava, alguns anos atrás, em lenta extinção. Vale mencionar dois deles, pelo que contêm de paradoxal e irônico.

Conforme se desenvolve­m os mecanismos democrátic­os de denúncia e apuração de falcatruas e negociatas políticas, cresce o sentimento de que a corrupção é o grande problema da sociedade (quase nunca é) e de que o sistema inteiro está comprometi­do (verdade parcial, que comporta nuances). Surge a percepção de que nos “bons tempos” a corrupção teria sido menor, quando era apenas mais invisível.

Outro aspecto é que os hábitos da internet conferem uma sensação ilusória de “empoderame­nto” e eliminação de intermediá­rios. A melhor ilustração disso não está num livro, mas num cartum recentemen­te publicado pela revista New Yorker.

Na cabine de passageiro­s de um jato, enquanto outros já se apressam a segui-lo, um deles se pôs em pé no corredor, bradando aos companheir­os de viagem: “Quem acha que os pilotos perderam contato com passageiro­s comuns como nós, e que um de nós deve substituíl­os, siga-me!”.

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