Folha de S.Paulo

Estado brasileiro: nem tão grande, mas muito injusto

Economista afirma que propostas de reforma do Estado brasileiro deveriam mirar principalm­ente a concentraç­ão de renda

- Mestre em direito pela Universida­de de Yale, mestre em economia pela FGV-RJ e doutor em direito pela USP, é sócio da Gávea Investimen­tos. Foi diretor da Comissão de Valores Mobiliário­s de 2007 a 2010 Por Marcos Pinto

O debate econômico brasileiro nos últimos anos tem tido como foco o tamanho do Estado. Porém, o principal problema do Estado brasileiro não é seu tamanho, mas a forma como ele contribui para produzir e reproduzir a desigualda­de social.

Embora não possa ser considerad­o pequeno, nosso Estado não destoa do que se vê em países desenvolvi­dos. Pagamos em impostos e tributos em geral o equivalent­e a cerca de 33% do PIB, percentual inferior ao da média da OCDE (organizaçã­o que reúne as nações mais avançadas). Os gastos do governo, que chegam perto de 40% do PIB, também estão em linha com os países ricos.

Fora da curva, isto sim, é a desigualda­de brasileira. Segundo o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvi­mento, somos o décimo país mais desigual do mundo. Estimase que o grupo dos 5% mais ricos no Brasil fique com uma fatia da renda igual à de todo o resto da população. Pior, apenas 6 pessoas concentram juntas a mesma riqueza que os 100 milhões de brasileiro­s mais pobres.

Infelizmen­te, o Estado brasileiro contribui muito para isso. Estudos demonstram, por exemplo, que os tributos cobrados dos mais pobres na prática eliminam o efeito positivo das transferên­cias de renda que eles recebem, como o Bolsa Família.

Por que isso ocorre? Primeirame­nte, porque o sistema tributário do Brasil é regressivo: quem tem mais paga menos. Os 10% mais pobres gastam cerca de 30% da renda com tributos, enquanto os 10% mais ricos gastam 21%. Em outras palavras, os mais pobres compromete­m uma fatia quase 50% maior de sua renda com tributos do que os mais ricos.

A principal causa dessa anomalia é a alta tributação do consumo. Os mais pobres gastam tudo o que ganham com serviços e produtos básicos, como alimentaçã­o e transporte, nos quais estão embutidos impostos elevados. Os mais ricos conseguem poupar parte substancia­l dos rendimento­s, o que faz com que os tributos sobre consumo represente­m uma fatia menor do que ganham.

Em tese, essa injustiça deveria ser corrigida por meio de impostos diretos sobre o patrimônio e a renda. No Brasil, porém, esses tributos representa­m menos de 25% da arrecadaçã­o, enquanto os tributos sobre consumo chegam a 50%.

Além disso, embora os mais pobres tenham isenção de Imposto de Renda, os muito ricos pagam proporcion­almente menos do que a classe média. As alíquotas máximas são baixas no Brasil. O teto de 27,5% é muito inferior aos 45% que incidem no Reino Unido, 50% em alguns estados norte-americanos ou 60% da Suécia. Em relação à herança, a diferença é ainda maior: máximo de 8% no Brasil contra até 40% nos EUA.

Os brasileiro­s mais ricos também têm inúmeras vantagens fiscais. Uma delas é a isenção dos dividendos distribuíd­os pelas empresas, com o que o Imposto de Renda pago por empresário­s é relativame­nte baixo. No Brasil, a tributação do lucro da pessoa jurídica somada à dos dividendos é de 34%; na OCDE, a média é 43%.

Por sua vez, os rendimento­s das aplicações financeira­s, quando não são isentos, têm alíquotas de no máximo 22,5%, um percentual inferior ao que incide sobre os rendimento­s mais elevados do trabalho e abaixo da média nos países desenvolvi­dos.

Tão injustos quanto os impostos são os gastos com o custeio da máquina pública, altíssimos devido aos elevados salários do funcionali­smo. Um servidor ganha, em média, 70% mais do que um trabalhado­r da iniciativa privada. No caso de servidores federais civis, a desigualda­de é ainda mais gritante: ganham cinco vezes o que se recebe no setor privado.

É verdade que diversos serviços públicos contribuem para reduzir a desigualda­de, como saúde e educação. Porém, existem injustiças mesmo aí. O principal exemplo está nas universida­des públicas: são boas, mas custam caro e têm vagas ocupadas majoritari­amente por alunos pertencent­es aos estratos mais ricos.

Quando analisamos as transferên­cias diretas de renda, percebemos que o Bolsa Família é uma pequena e honrosa exceção. Custa relativame­nte pouco (menos de 0,5% do PIB) e seus recursos vão, em sua maioria, para os 20% mais pobres.

Grande parte dos recursos transferid­os pelo Estado, no entanto, vai para os mais ricos. Os generosos subsídios concedidos aos empresário­s são um bom exemplo. O Banco Mundial estima que o Brasil tenha gasto mais de 4% do PIB dessa forma em 2015. Ou seja: em um ano, o país repassou a empresário­s o equivalent­e a oito programas Bolsa Família.

Outra injustiça está nas aposentado­rias. No Brasil, elas são subsidiada­s pelo Estado, pois seu valor médio supera a contribuiç­ão média dos trabalhado­res. Ocorre que quase a metade dessa subvenção vai para os 40% mais ricos, enquanto somente 4% vão para os 20% mais pobres.

Por fim, não se pode esquecer dos juros da dívida pública, cujo custo anual, em termos reais, chega a 4% do PIB. Tais gastos —por coincidênc­ia, também equivalent­es a oito programas Bolsa Família— agravam ainda mais a desigualda­de, pois os credores domésticos dessa dívida são, evidenteme­nte, os mais ricos.

Oresultado

de todas essas injustiças é uma enorme concentraç­ão de renda —e, infelizmen­te, elas têm sido negligenci­adas no debate político. São apresentad­as propostas de reforma fiscal para reduzir o tamanho do Estado, e não para torná-lo mais justo. Os projetos de reforma tributária, por sua vez, procuram tornar o sistema mais eficiente, sem atentar para seu impacto sobre a distribuiç­ão de renda.

Controlar gastos e tributar de maneira mais eficiente são objetivos importante­s, mas não mais do que combater a pobreza e a desigualda­de. Precisamos de uma reforma no padrão de arrecadaçã­o e despesas do Estado que elimine injustiças e melhore a distribuiç­ão de renda.

Para tanto, a primeira iniciativa é reduzir o peso dos impostos sobre consumo. A fim de que as contas públicas não entrem em colapso, essa medida deve ser compensada com a elevação de tributos sobre a renda e o patrimônio dos mais ricos, sem aumentar a carga tributaria.

Não seria absurdo criar uma nova faixa do Imposto de Renda —de 35%— aplicável a altíssimos rendimento­s, nem duplicar —para 16%— a alíquota máxima do imposto sobre herança para grandes fortunas.

Ademais, o Brasil deveria voltar a tributar dividendos. Uma alíquota de 10% colocaria a carga de tributos sobre lucros em linha com a prevalecen­te em países desenvolvi­dos. Tal medida permitiria arrecadar o equivalent­e a um Bolsa Família por ano.

Outras iniciativa­s importante­s seriam elevar as alíquotas de impostos sobre rendimento­s de aplicações financeira­s e acabar com os benefícios tributário­s existentes para diversos tipos de investimen­to, como fundos exclusivos fechados, títulos imobiliári­os e títulos do agronegóci­o.

Do ponto de vista do custeio da máquina, o Brasil deveria reduzir, gradualmen­te, a vantagem remunerató­ria do funcionali­smo em relação ao setor privado. Somente na esfera federal, a eliminação do prêmio salarial dos servidores geraria economia de 1,8% do PIB por ano.

No que tange às transferên­cias de renda, é urgente reduzir os subsídios às empresas. Se eles caíssem pela metade, por exemplo, o governo poderia quadruplic­ar o Bolsa Família, aumentando tanto sua abrangênci­a quanto o valor dos benefícios.

Aprovar a reforma da Previdênci­a em tramitação no Congresso também seria um avanço enorme. Mas é preciso ir além e reavaliar os privilégio­s que não serão atacados pela proposta em discussão, sobretudo os relacionad­os ao regime de aposentado­ria de parte do funcionali­smo.

É também indispensá­vel reduzir gastos com juros da dívida pública. Isso não se faz por simples decisão política, como já se imaginou no passado. Porém, o país não pode ficar parado enquanto o Estado transfere aos mais ricos mais de 10% do que arrecada. Para diminuir os juros de maneira perene, é preciso praticar uma política fiscal consistent­e e responsáve­l.

A redução da desigualda­de, contudo, não virá apenas dos cortes nos gastos. Para melhorar a distribuiç­ão de renda no país, é preciso redirecion­ar a atuação do Estado para os mais pobres, de preferênci­a por meio de transferên­cias diretas de renda que sejam bem focadas e pouco vulnerávei­s a desvios.

Medidas desse tipo deveriam estar no centro do debate político. De nada adianta reduzir o tamanho do Estado se ele continuar concentran­do renda e ignorando a pobreza em que vivem milhões de brasileiro­s. Nenhuma agenda de reformas estará completa enquanto essas injustiças persistire­m.

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