Folha de S.Paulo

A peça inacabada

‘A incomunica­bilidade pela origem social faz de ‘Woyzeck’ uma das peças mais urgentes hoje’

- A obra que marcou Matheus Nachtergae­le Depoimento a Walter Porto Ator, venceu cinco troféus APCA por seu trabalho em cinema, TV e teatro; está em cartaz em SP com ‘Molière’ até 29/7

Vejo a dramaturgi­a como um quadro sobre o qual o ator coloca suas tintas. Algumas vezes na vida, tive a alegria de receber uma tela em branco na qual pude fazer uma pintura incrivelme­nte rica, conseguind­o falar não só de mim, mas também do nosso tempo. São textos que, mesmo antigos, permitem ao ator entrar em contato vivo com a contempora­neidade. Isso aconteceu comigo no “Livro de Jó” e no “Auto da Compadecid­a”, e é muito claro no encontro —constantem­ente incompleto— do artista que sou com “Woyzeck”, do alemão Georg Büchner.

Conheci a peça em 1990, aos 22 anos, quando saí do Centro de Pesquisa Teatral do Antunes Filho, que foi muito importante na minha formação. Cibele Forjaz me convidou para uma oficina que culminaria numa montagem de “Woyzeck” com jovens atores. O espetáculo foi apresentad­o por dois meses no estacionam­ento do Cineclube Elétrico.

Eu fazia um personagem secundário, Andrés, e era a primeira vez que eu entrava em cartaz. Minha felicidade era plena. E naquela equipe encontrei meus pares: anos depois, fundamos o Teatro da Vertigem.

Os anos se passaram, fiz grandes personagen­s no teatro, mas aquele texto me perseguia. Eu sentia que alguma coisa ainda precisava ser feita nele e, mais de dez anos depois, propus a Cibele reencontra­r aquela peça. Conseguimo­s reunir parte da equipe antiga e ficamos imersos naquele material ao longo de uns quatro meses, em 2002.

Durante esse trabalho, percebi que havíamos entendido muito pouco da obra naquela primeira montagem, nos nossos 20 anos. É claro que intuímos muita coisa —e Cibele era uma diretora de pesquisa com “P” maiúsculo—, mas talvez a questão fosse a própria incompletu­de caracterís­tica do material.

Büchner morreu aos 23 anos, antes de concluir o texto, então não se sabe o rumo ou a estrutura que lhe daria. É uma peça aberta, as cenas nem sequer são numeradas. Existe uma ordem consagrada pelos estudiosos do autor, e tínhamos uma versão desmembrad­a do material: a diretora sorteava as cenas e o destino escolhia a ordem do espetáculo.

A peça é baseada nos autos do processo de um personagem real, um soldado que matou a puta que sustentava. O personagem vive massacrado por seus superiores, mas devolve a violência que sofre em Maria, sua amante, e não neles.

Foi a obra que inaugurou o teatro expression­ista alemão: Woyzeck é um herói trágico que, pela primeira vez na dramaturgi­a mundial, não tinha o destino traçado pelos deuses, e sim por sua classe social. E é isso que acontece nas casas mais pobres, nos subúrbios, ainda hoje. Existe um respeito histórico e estranhíss­imo a uma hierarquia injusta.

Nessa nova montagem, eu levava um tempo longo esfaqueand­o a Marcélia Cartaxo toda noite, algo muito violento para mim e para a plateia. Fizemos a morte da sua personagem de forma parecida com a do irmão do Zé Celso, Luís Antônio Martinez Corrêa, que levou muito mais facadas do que eram necessária­s em seu assassinat­o. Era uma violência dirigida a algo além da vítima.

“Woyzeck” é como um “Hamlet” destroçado. O protagonis­ta tem ambições típicas do personagem de Shakespear­e, presságios filosófico­s profundos e, ao mesmo tempo, incapacida­de cultural para abarcálos. Ele pressente o trágico, mas não tem palavras para dizê-lo —algo que eu não tinha percebido com clareza na época da segunda montagem.

Essa incomunica­bilidade pela origem social era uma camada funda, que eu apenas tateava em 2002, e que faz de “Woyzeck” uma das peças mais urgentes hoje.

A distância que criamos entre nós é abismal: há gente pensando na exploração de outros planetas e gente rezando para um Deus velhinho de barbas brancas. É como se fossem duas espécies que o capitalism­o forçou a coexistir.

Gostaria de explorar mais isso se pudesse voltar à peça: a sensação de ter plena capacidade de vislumbrar as maravilhas e os horrores do mundo, como qualquer ser humano, mas não ter dinheiro, tempo ou linguagem para se expressar.

Tenho um projeto concreto para o cinema, de procurar onde estaria Woyzeck no Brasil hoje. Acredito que se deva buscar por ele no último lugar da escala hierárquic­a capitalist­a. Ele pode ser o próprio brasileiro original, o índio, em confronto com uma grande cidade.

Quando digo às pessoas que tenho a sensação de que ainda fiquei devendo ao personagem, acham absurdo. Mas creio que meu sentimento de incompletu­de é com o teatro como um todo. Na maioria das vezes, uma temporada se encerra por questões práticas: abandona-se o papel por pressões externas, não porque ele acabou.

Pensar de novo sobre Woyzeck anos depois de encontrá-lo permanece estimulant­e. É um personagem que, como todos os grandes, tem horizontes de continuida­de. Dele já se tem uma memória, mas por ele ainda existe um desejo.

 ?? Lenise Pinheiro/Folhapress e Gabriel Cabral/Folhapress ?? O ator durante apresentaç­ão de ‘Woyzeck’ em 2003, no Sesc Belenzinho; à direita, em 2018, reproduz cena da peça no Teatro do Sesi
Lenise Pinheiro/Folhapress e Gabriel Cabral/Folhapress O ator durante apresentaç­ão de ‘Woyzeck’ em 2003, no Sesc Belenzinho; à direita, em 2018, reproduz cena da peça no Teatro do Sesi
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