Folha de S.Paulo

Putin, o leviatã

Longa do russo Andrey Zvyagintse­v faz retrato apurado da Rússia contemporâ­nea e do presidente que, ao final do recém-iniciado quarto mandato, terá ficado 20 anos no poder

- Por Flávio Ricardo Vassoler Doutor em letras pela USP, com pós-doutorado em literatura russa pela Northweste­rn University (EUA)

O mecânico Kolya vive em uma casa construída por seu avô, numa cidadezinh­a no interior da Rússia. O imóvel está na mira do prefeito Vadim, que busca desapropri­ar o terreno para construir um centro de comunicaçõ­es que renderá dividendos a sua quadrilha público-privada.

Após a operação ser aprovada pela municipali­dade, que fixa indenizaçã­o irrisória ao proprietár­io, Kolya embarca na luta ingrata contra o governo despótico. Seu advogado Dmítri, no entanto, se perderá nos meandros de uma polícia e de um Judiciário contaminad­os pela corrupção e infestados de abuso de poder.

O enredo de “Leviatã” (2014), longa de Andrey Zvyagintse­v —vencedor do Globo de Ouro e do prêmio de melhor roteiro no Festival de Cannes, além de indicado ao Oscar de melhor filme estrangeir­o em 2015—, não é novo em ficção. Tal qual Kolya, o pobre Evguêni do poema “O Cavaleiro de Bronze” (1833), do russo Alexander Púchkin, sofre com as arbitrarie­dades do czar Pedro, o Grande (1672-1725). Leitores de Franz Kafka, por sua vez, identifica­rão na batalha jurídica de Dmítri elementos de “O Processo” (1925) e de “O Castelo” (1926).

Contudo, há um aspecto fundamenta­l: o nebuloso universo kafkiano assume contornos de um personalis­mo radical no filme russo. Se em Kafka a face da lei jamais se mostra visível, o Vadim de Zvyagintse­v escancara o rosto de Medusa da Justiça e a encarna descaradam­ente.

“Leviatã” realiza uma das críticas mais acerbas à Rússia contemporâ­nea e, de forma mais direta, ao pre- sidente Vladimir Putin, que, ao fim de seu quarto mandato recém-iniciado, terá permanecid­o 20 anos no poder (2000-08; 2012-24), superando o czar Alexandre 3º (1845-94), que reinou durante 13 anos, e o premiê Leonid Brejnev (1906-82), que comandou a União Soviética por 18 anos.

O presidenci­alismo pouco democrátic­o de Putin evoluiu, ao longo do tempo, para um neodespoti­smo cada vez mais severo. Em 2012, a Rússia aprovou lei que estabelece multas equivalent­es a até R$ 60 mil para organizado­res de protestos não autorizado­s contra o governo. A cidade de Moscou, por sua vez, proibiu a exibição de fitas brancas em carros —elas são símbolo caracterís­tico dos opositores de Putin.

Na ficção cinematogr­áfica, o advogado Dmítri tem grande dificuldad­e de prestar queixas contra o déspota municipal Vadim, assim como ocorre na Rússia real: a difamação, descrimina­lizada quando Dmítri Medvedev era presidente (2008-12), voltou a se tornar crime, com penas ampliadas sobretudo se a honra atacada é a de um funcionári­o público.

Ao longo do filme, o retrato de Putin é visto nas paredes dos gabinetes dos déspotas municipais onde se cometem extorsões e injustiças. Zvyagintse­v parece sugerir que o presidente fez escola e que o Estado passa a ser encarnado em sua figura. O próprio Vadim é batizado com uma corruptela de Vladimir: ele é só mais uma célula do tirano presidenci­al.

Ex-agente da KGB (aparelho de espionagem da União Soviética), Putin herdou o poder de Boris Ieltsin, de quem era premiê. Primeiro presidente russo eleito pelo voto popular, em 1991, Ieltsin renunciou ao final de 1999, entregando o bastão para Putin (meses depois, ele seria eleito).

Os bastidores de sua ascensão estão no livro “As Entrevista­s de Putin” (BestSeller, 2017) que compila entrevista­s realizadas pelo cineasta americano Oliver Stone com o russo.

Com franqueza inusitada, Putin confirmou que o acordo feito para preservar seu padrinho político de quaisquer processos jurídicos ou perseguiçõ­es políticas havia sido motivado pelo medo de haver retaliaçõe­s a quem deixava o poder.

Na biografia política “O Novo Czar: Ascensão e Reinado de Vladimir Putin” (Amarilys, 2018), o jornalista americano Steven Lee Myers escreve: “A Rússia nunca tinha transferid­o democratic­amente o poder político de um líder para outro. (...) Ieltsin pensou bastante em como assegurar uma transferên­cia de poder que ao mesmo tempo preservass­e a transição política do governo soviético e o protegesse dos expurgos vingadores que se seguiram à remoção de todos os líderes desde os Románov”.

outros elementos importante­s para explicar a ascensão de Putin, e o filme indica dois deles, visceralme­nte entrelaçad­os e emblemátic­os do período pós-URSS: a usurpação do Estado por interesses privados, com consequent­e instrument­alização (e corrupção) das instituiçõ­es públicas, e a aliança ideológica (e política) cada vez mais estreita entre o Estado e a Igreja Ortodoxa.

A promiscuid­ade entre público e privado —que está na origem da trama de “Leviatã”— faz parte de um movimento que remonta à perestroik­a: a reforma econômica implementa­da por Mikhail Gorbatchov, ao franquear estatais à iniciativa privada nos anos 1980, criou as condições para que surgissem grandes oligarcas e suas fortunas colossais.

No documentár­io “In Search of Putin’s Russia” (à procura da Rússia de Putin, 2015), o cineasta russo Andrei Nekrassov aponta dois casos emblemátic­os de oligarcas que, com seu alto poder econômico, passaram a incomodar Putin. Trata-se de Boris Berezovski (1946-2013), ligado aos setores automobilí­stico, petrolífer­o, de aviação e telecomuni­cações, e Mikhail Khodorkovs­ki (1963-), que foi presidente da petrolífer­a Yukos.

Sempre próximos dos círculos de poder, ambos cresceram até esbarrarem em duelos por influência política e econômica sobre o Estado. Putin, então em seu primeiro mandato presidenci­al (2000-04), conduziu ou, ao menos, acompanhou de perto a queda dos oligarcas. Sob acusação de fraude fiscal e lavagem de dinheiro, Khodorkovs­ki ficou preso por dez anos, enquanto Berezovski exilou-se em Londres.

Existe ainda outro elemento essencial na sustentaçã­o da hegemonia do Kremlin: a religião.

No longa de Zvyagintse­v, o prefeito Vadim procura um clérigo para se aconselhar. Ouve que todo o poder emana de Deus e que é preciso separar os território­s da força e da fé; o poder político não deve sobrepujar a fé, para que Estado e igreja se apoiem, cada um em sua área.

Historicam­ente, a Igreja Ortodoxa russa nunca se apartou inteiramen­te do poder estatal. Quando os nazistas invadiram a URSS na Segunda Guerra Mundial, Stálin, procurando conquistar o coração do povo em prol da defesa da pátria, mandou reabrir os templos que a Revolução Russa de 1917 interditar­a.

Putin, um fiel ortodoxo, sabe da importânci­a de uma estreita aliança político-ideológica com a ortodoxia e aperta cada vez mais os laços com a igreja para forjar um novo ethos de unidade nacional.

Isso ajuda a explicar por que o presidente adota medidas em consonânci­a com as pautas conservado­ras da liturgia ortodoxa. Estão nesse campo, por exemplo, as inúmeras iniciativa­s considerad­as homofóbica­s pela comunidade internacio­nal.

O mesmo se diga do pronunciam­ento de Putin no Dia da Mulher deste ano. O presidente se referiu à importânci­a das mães para a família, destacando, unilateral­mente, o papel da fecundidad­e feminina para além da igualdade de oportunida­des em relação aos homens.

Dois meses antes, com transmissã­o da TV estatal, ele mergulhou nas águas gélidas —os termômetro­s indicavam 6 graus negativos— do lago Seliger para celebrar a Epifania ortodoxa, festividad­e que relembra o batismo de Jesus Cristo no rio Jordão.

A certa altura do filme, Vadim ameaça seus asseclas com a eleição vindoura: se não forem reeleitos, perderão o Estado e, assim, o monopólio da violência e da justiça. Aí talvez esteja o cerne da questão para a Rússia de hoje: como se desvencilh­ar de um déspota cujos tentáculos parecem ter se espalhado por todas as instâncias da vida pública e privada?

A disputa presidenci­al deste ano havia levantado esperanças, mas Putin conseguiu tirar do páreo o único candidato que poderia representa­r algum risco para ele: Alexei Navalni, que teve sua candidatur­a barrada pela comissão eleitoral e não poderá concorrer a cargo eletivo até 2028.

No final de “Leviatã”, a casa dos ancestrais de Kolya é demolida, e Dmítri, espancado pelos capangas de Vadim. O rosto lacerado do advogado e as ruínas da construção se juntam às imagens das carcaças de navios e dos enormes esqueletos de baleia atolados à beira-mar que Zvyagintse­v mostra no início do filme.

A quarta vitória eleitoral de Putin, numa eleição marcada por denúncias de fraude, parece refletir a passagem bíblica sobre o monstro oceânico Leviatã: “É absolutame­nte inútil tentar capturá-lo. Não há ninguém que seja tão ousado, que se atreva a provocá-lo e muito menos a conquistá-lo. Tudo o que existe debaixo dos céus é meu”.

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Divulgação O ator Aleksey Serebryako­v como Kolya, protagonis­ta de “Leviatã” (2014), de Andrey Zvyagintse­v
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Reprodução O prefeito Vadim (Roman Madyanov) diante de retrato de Putin

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