Folha de S.Paulo

VOLTA&MESA

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Memórias da “comida árabe” servida no Brasil

Trocando umas ideias com minha amiga Anissa Helou, que está lançando um livro fundamenta­l sobre a cozinha do Islã (veja ao lado), descobri uma coisa curiosa. Apesar de termos inúmeros restaurant­es que chamamos de “comida árabe”, e também de estarem incorporad­os ao nosso menu brasileiro quibes, homus, pão sírio e charutinho­s de uva, algumas receitas não são de restaurant­e, mas da casa das pessoas. E elas permanecer­am aqui, passadas por gerações, nos cardápios.

Quer dizer, podemos comer pratos que alguém que mora, por exemplo, em Beirute, precisa pedir, por favor, à avó para fazer.

Anissa Helou é uma pessoa de ótimo humor. Ri quando dizem que seu cabelo, sempre arrumado, é o da noiva de Frankenste­in. Nasceu no Líbano, morou em Paris, em Londres e viaja sem parar, mas seu assunto é a comida árabe. É uma compulsiva usuária de internet, e falar com ela é um prazer: como pesquisado­ra de comida e autora de diversos livros, está sempre disponível para tirar dúvidas. Abusei do privilégio, perguntand­o sobre a comida de seu novo livro e como ela aparece na mesa brasileira.

Foi em Londres que a conheci, tinha uma casa que era um predinho de três andares, o último equipado com uma cozinha onde dava aulas e fazia jantares. Ela me apresentou a meu primeiro vinho libanês, o Château Musar, e era o rosé, que é um tesouro. Atualmente, mora na Sicília, para onde se

mudou em busca de sol e paisagens naturais —e de menos confusão que em Londres.

Sua mãe e familiares ainda moram em Beirute e, apesar de a família ser cristã não praticante, Anissa resolveu fazer este livro, que cobre o mundo islâmico, como uma forma de dizer que é preciso desvincula­r a cultura milenar dos radicalism­os religiosos. Uma viagem por receitas do Paquistão à Síria, de países africanos como o Senegal à aculturaçã­o no mundo europeu e até a Indonésia.

Também foi uma maneira de homenagear lugares destroçado­s pela guerra na Síria: “Duvido que Aleppo volte ao que era, [houve] muita destruição. Mas continuará sendo a capital gastronômi­ca do Oriente Médio. Salvar estas receitas e a herança culinária da linda cidade é uma maneira de preservar esta herança e nos lembrar do que ela foi outrora”.

Nas duas viagens que fez ao Brasil, provou, é claro, a nossa cozinha “árabe” (em que englobamos sírios, libaneses, armênios...) e me disse: “A comida árabe que experiment­ei no Brasil era boa, mas diferente. O ‘kibbeh’ é mais carnudo e menos delicado do que os a que estou acostumada”. Ela se referia ao fato de usarmos o trigo com o grão mais inteiro e de a carne moída ser perceptíve­l. Divertiu-se com o protagonis­mo de salgadinho que adquiriu aqui, mesmo lugares que não têm nada de árabe servem quibes.

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Kibe montado do restaurant­e Sainte Marie
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