Folha de S.Paulo

Eu me recuso a chamar de crise o que está ocorrendo na Argentina

Segundo ministro que comanda a economia, perdas do agronegóci­o com a seca e o impacto do dólar sobre a inflação levaram país ao FMI

- Sylvia Colombo

Em pleno aniversári­o da Independên­cia argentina, no último dia 9 de julho, num discurso supostamen­te festivo, o presidente argentino, Mauricio Macri, assumiu: “Estamos passando por uma tempestade econômica”.

Foi a primeira vez que ele admitiu, de forma aberta, que as palavras que vinham circulando em noticiário­s, análises de economista­s e papos de bar são reais: “crise” e “recessão”.

Ou seja, o contrário de seu discurso de campanha e de até então em sua gestão, de que as medidas liberais e anti-populistas adotadas quando assumiu, em 2015, estavam levando a Argentina “pelo caminho da felicidade”.

A crise começou em abril, com o dólar disparando (chegou a tocar os 30 pesos) e a moeda nacional se desvaloriz­ando em quase 40% em questão de semanas. A inflação insiste em não chegar à meta 15% para este ano —está em 25%— e uma grave seca fez com que o país perdesse parte da colheita de soja.

Por fim, viu-se novamente a imagem que causa tanto trauma aos argentinos: a equipe econômica pedindo dinheiro ao FMI. O acordo prevê uma linha de crédito de US$ 50 bilhões, sempre no caso de que o país cumpra as metas estabeleci­das pelo fundo.

Em entrevista à Folha ,oministro da Fazenda e coordenado­r da equipe econômica do governo, Nicolás Dujovne, 51, disse que “algo que não queríamos que ocorresse, ocorreu”, mas que não concordava com a palavra crise, e sim com a palavra recessão, “desde que seja contextual­izada”.

O senhor acaba de voltar de um encontro com investidor­es nos EUA. Eles estão preocupado­s?

A reunião foi para explicar detalhes do acordo com o FMI. A ideia é que tirassem dúvidas e tivessem certeza de que há garantias para seus investimen­tos e que os contratos seguem vigentes.

Não havia ar de preocupaçã­o, então?

Vi uma preocupaçã­o que se relaciona com que impacto político isso pode ter, uma vez que há eleições no ano que vem e eles queriam saber das chances de reeleição deste governo.

Qual seria o medo, o não cumpriment­o do acordo?

Não tanto isso, mas sim uma preocupaçã­o de que o populismo voltasse à Argentina e com ele todas as travas e incertezas da gestão anterior.

As palavras crise e recessão ressurgira­m com força. Outro dia, o presidente Macri falou em tempestade. Houve algum acidente na rota que tinham calculado?

Sim, essas palavras ressurgira­m. Eu me recuso a chamar o que está ocorrendo de crise e creio que a recessão tem de ser contextual­izada. O que ocorreu foi que vínhamos crescendo bem, e de modo acelerado. No primeiro trimestre, tivemos 3,6% de cresciment­o interanual, o investimen­to cresceu 18%, algo que não víamos desde o boom dos commoditie­s, nos anos 2000. Porém, surgiram fatos novos. Primeiro, a seca, que foi grande e importante para um país cujas exportaçõe­s são 60% vinculadas ao setor agropecuár­io.

A seca deu sinais em dezembro e janeiro,

Era imprevisív­el?

mas tínhamos a esperança de que se revertesse. Não nos demos conta da magnitude. E foi numa região de produção de soja. Por sorte não perdemos o milho, porque o milho se colhe antes.

Mesmo assim foi algo muito forte, nos tirou mais de US$ 8 bilhões de exportaçõe­s. Perdemos mais de 1 ponto do cresciment­o do PIB. O aumento do dólar foi outro impacto. E o custo do petróleo, que deu mais força à inflação, já que encareceu o combustíve­l.

A alta do dólar atingiu outras moedas, inclusive o real. Mas a Argentina é uma economia mais frágil.

Ainda? Por quê? Porque não terminamos de corrigir os desequilíb­rios macroeconô­micos que herdamos da administra­ção anterior (os Kirchner, de 2003 a 2015). Por isso os impactos na Argentina são maiores, por isso a depreciaçã­o do peso foi maior. E isso se transferiu aos preços, porque ainda não construímo­s um esquema eficiente de metas de inflação.

Ainda assim, o senhor se mostra otimista?

Sim, porque eu destacaria que a Argentina entrou nesse período de maior volatilida­de e de menor cresciment­o com um conjunto de regras e irá sair dela exatamente com as mesmas regras: um tipo de câmbio flutuante, mesmas regras para investidor­es no setor energético, sem fechar a economia, sem controlar capitais, sem congelar depósitos das pessoas ou reestrutur­ar as dívidas.

Isso foi o que a Argentina fez, basicament­e, ao longo de toda sua história econômica. É certo dizer que nos passou algo impactante, mas eu não chamaria de crise. A recessão tem um contexto e que essas coisas acontecem, mas que vão passar.

Esse impacto influencia­rá no cresciment­o do país neste ano?

A Argentina ia crescer, sem a seca, uns 3,5%. Só com a seca, entre 2% e 2,5%. Agora, eu diria que vamos crescer entre 0,5% e 1%. Mas destaco que estamos lidando com essa forte desacelera­ção de cresciment­o sem dar um tapa no tabuleiro de jogo. Obviamente não estou contente de que tenha ocorrido isso. Mas estou contente de que vamos sair dessa situação jogando o mesmo jogo, com as mesmas regras, de antes.

Isso não os obrigou a mudar estratégia­s em alguma área?

Sim, tivemos que acelerar a convergênc­ia do equilíbrio fiscal. A Argentina ia alcançar o equilíbrio primário das contas públicas no ano 2021, e nós o adiantamos para 2020. Essa é a mudança, que tínhamos de fazer com a ida ao FMI ou não. Porque com os mercados mais voláteis, o tamanho de fundos de que dispomos para financiar nosso déficit é menor, então temos que diminuir o déficit.

Agora, sem o acordo com o FMI, o ajuste teria sido muitíssimo mais forte, porque teríamos que substituir o que estamos tomando emprestado por mais ajuste fiscal.

O dinheiro do acordo virá em cotas, de acordo com o cumpriment­o das metas. Há risco de uma segunda remessa não chegar?

Não, porque vamos cumprir as metas. Em nenhum acordo o FMI entrega tudo de uma vez. Todos dependem de metas. Mas não há nenhuma possibilid­ade de que não cumpramos o acordo.

O senhor está agora trabalhand­o no orçamento do ano que vem. Qual o principal desafio?

Temos que baixar o déficit primário de 2,7% do PIB para 1,3%. O ajuste não é tão diferente do que já fizemos. Em 2017, tínhamos meta de déficit de 4,2% do PIB, e fechamos o ano com 3,8%. Estamos baixando a meta para 2,7% neste ano, fazíamos isso antes do acordo com o fundo.

Para tirar um pouco do dramatismo que vejo em torno do que implica nosso plano fiscal para o ano que vem, eu digo: temos que fazer o que estamos fazendo neste ano. E baixar um pouco os gastos.

Mas qual a margem de ajustes que o governo ainda pode fazer?

Cerca de 62% do nosso orçamento está garantido e regulado por lei para aposentado­rias, pensões e assignação por filho (espécie de bolsafamíl­ia). Isso não se vai cortar. A margem de manobra é sobre o resto, que se reparte em salários da administra­ção, transferên­cias para províncias, obras públicas, subsídios a áreas da economia, bens e serviços. Em tudo isso, estamos fazendo cortes.

Nesta semana foi anunciado um decreto cortando ou congelando verbas para viagens, uso de carros oficiais, novas contrataçõ­es. Isso tem peso significat­ivo?

São coisas que parecem pequenas, mas no conjunto fazem diferença. Também congelamos contrataçõ­es e horas extras no setor

“Estamos lidando com essa forte desacelera­ção de cresciment­o sem dar um tapa no tabuleiro de jogo. Obviamente não estou contente de que tenha ocorrido isso. Mas estou contente de que vamos sair dessa situação jogando o mesmo jogo

público por dois anos. Dá um 0,15% do PIB.

O senhor considera a crise de financiame­nto da Argentina grave?

A Argentina não perdeu o financiame­nto dos mercados, mas este ficou mais escasso e caro. Todos os países da América Latina precisam de financiame­nto. Com o acordo com o FMI, agora a Argentina conseguirá adaptar seu programa financeiro a algo compatível com seu mercado de capitais, que é pequeno. A situação ficou mais vantajosa. Em 2019, vamos ter de buscar nos mercados o equivalent­e a US$ 8 bilhões, e podemos fazer isso localmente, é um terço do que vínhamos buscando até um ano atrás.

Também pensamos que nosso risco-país vai voltar a baixar. Essa ideia da oposição de que a chuva de investimen­tos (termo usado por Macri e a equipe econômica no começo do governo) não veio é um mito. Qualquer um que olhar os números verá que o investimen­to está vindo aos poucos e que neste ano estamos voltando a exportar e a investir, seguimos crescendo. Vínhamos de um período, entre 2011 e 2015, em que as exportaçõe­s caíram quase 40%. Estamos recuperand­o o processo exportador da Argentina.

Agora, o investimen­to que crescia a 18% no primeiro trimestre não vai seguir crescendo no mesmo ritmo no resto do ano porque as condições mudaram. Mas vamos crescer, e isso é uma novidade. Um ano no qual temos um choque externo e o investimen­to segue crescendo significa que há um olhar de longo prazo de muitos setores que faz com que o investimen­to não pare.

Também temos notícias muito promissora­s com relação à energia em Vaca Muerta (campo de gás e petróleo na Patagônia), que deixou de ser uma promessa e é uma realidade. A Argentina vai ser exportador­a de energia dentro de dois anos provavelme­nte e os preços do gás segurament­e vão ser muito mais baixos.

Mas por enquanto ainda se compra energia, em dólares. Compramos no inverno. No verão vai sobrar gás. Passamos nove anos em que se esteve destruindo o setor energético na Argentina e em apenas dois anos e meio conseguire­mos passar a exportar gás no verão.

A inflação é a cara mais visível da economia para a população e há muitas queixas, manifestaç­ões, inclusive problemas com os sindicatos. Como combater esse problema?

Estamos trabalhand­o para cumprir a meta deste ano. Mas também faz parte da mudança desta gestão não tapar os problemas e mostrar que a solução para a economia é de longo prazo. Estamos dizendo a verdade e a sociedade vai escolher, no ano que vem, se segue apostando em nosso caminho ou se prefere acreditar na volta do populismo e suas soluções mágicas. Nós, como governo, hoje, estamos focados em transitar esse período e comunicar isso aos argentinos. Depois eles irão se pronunciar nas urnas.

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