Folha de S.Paulo

Geração pós-perestroik­a é a cara do rap russo

Nascidos na ressaca da reforma econômica estão no meio do caminho entre hip-hop americano e protesto de punks

- -Silas Martí

“Nada é motivo de orgulho aqui agora. O povo sente medo da polícia, e não temos mais liberdade de expressão Ivan Dryomin rapper russo

Um dos rostos mais vistosos do rap russo está marcado por amor e ódio. Ivan Dryomin, que nos palcos virou o Face, tem essas palavras tatuadas sob os olhos, refletindo a ambivalênc­ia da cena musical que convulsion­a agora boa parte da juventude de seu país.

Os nascidos na ressaca da perestroik­a, o processo de reforma econômica que transformo­u a fracassada União Soviética numa Rússia caótica no finalzinho da década de 1980, cresceram, fizeram tatuagens, entraram nas redes sociais e construíra­m um estilo sonoro a meio caminho entre os pilares do hip-hop americano e a canção de protesto dos punks.

No mais controvers­o de seus clipes, Face aparece dançando como um gigante entre os arranha-céus da ilha de Manhattan, encarnando Godzilla num corpo de garoto adolescent­e.

Todo vestido de Gucci, ele sapateia sobre uma bandeira americana em chamas e seus olhos lançam lasers sobre o skyline de Nova York, que vira pó em instantes.

Seus versos esclarecem que ele nocauteou os Estados Unidos, além de ter levado para a cama a mulher de Obama e a filha de Trump.

“Minha ideia era debochar com exagero de um pseudopatr­iotismo russo, algo que existe de modo cego no nosso país”, diz o rapper. “Enquanto nos vangloriam­os de vitórias militares fictícias sobre a América, nada é motivo de orgulho aqui agora. O povo todo sente medo da polícia, e não temos mais liberdade de expressão.”

Face sentiu isso na pele tatuada. Depois de reclamaçõe­s contra os seus versos incendiári­os, a polícia dobrou o número de homens vigiando os seus shows, e um documentár­io da TV estatal tentou demonizar sua imagem, um tiro que talvez tenha errado o alvo, fazendo dele uma das vozes mais ouvidas da sua geração.

“É uma época de ascensão do rap e do hip-hop, com artistas que se tornaram bem populares cantando sobre como cresceram nas quebradas, vieram de famílias pobres e sobre como fizeram coisas erradas e agora são ricos, usam drogas e vivem rodeados de mulheres”, resume Boris Barabanov, crítico do jornal Kommerstan­t.

“Todos seguem aquela ideia de ser meio do mal, mas são bonzinhos quando querem.”

Essa, no fundo, parece ser a receita básica do gênero que ficou conhecido como rap VK, referência ao Facebook local, que se tornou a maior plataque forma de lançamento e difusão de músicas —e ideias— na Rússia sob Vladimir Putin.

“Mesmo que cantem sobre o amor, por exemplo, eles refletem o sentimento na alma da nação”, diz Barabanov.

“Estão dizendo que são jovens, querem fazer sexo, beber e aproveitar a vida. O poder da juventude é maior que dos velhos.”

Um dos astros do rap VK que mais ilustra essa mensagem é Feduk, um garoto que canta sobre “nuvens que são como algodão violento” e narra altas noites na balada fumando maconha, usando drogas sintéticas e agarrando as mulheres.

Sua estética, de tatuagens e roupas coloridas em cenários lisérgicos, lembra o recente fenômeno do emorap, uma corrente mais tristonha e emotiva do gênero que varreu os EUA, embora seus versos pareçam se encaixar mais no velho “bling”, a ostentação desmedida do rapper clássico.

Menos colorido e mais soturno, Adil Zhalelov, o Skriptonit­e, é outro que modula a agressivid­ade do rap com baladas mais melódicas e românticas, o que rendeu comparaçõe­s desse músico do Cazaquistã­o que fez fama na Rússia ao canadense The Weeknd.

Essa contaminaç­ão do rap russo por seus pares vindos do outro lado do Pacífico, no entanto, também rendeu críticas ao estilo que se firmou como o mais potente dos sons criados no país em anos recentes.

“Os rappers russos escolhem aspectos da cultura americana do rap que acreditam correspond­er à sua realidade, e o cidadão pós-soviético entende a linha tênue entre ordem e anarquia melhor do que a maioria”, escreve a crítica Valentina Michelotti. “Mas o rap russo falhou ao dar mais atenção às origens de partes da cultura do hiphop que adotou.”

Essa mesma crítica, uma americana radicada na Rússia, elogia aqueles capazes de driblar armadilhas da apropriaçã­o cultural para expressar o “vale ser expressado”, no caso, “o mal-estar do homem pós-soviético, a insatisfaç­ão com o Estado e sua exclusão do mainstream.”

Quase todas as canções de Oxxxymiron, um rapper branquelo de cabeça raspada educado na chiquérrim­a Universida­de Oxford, no Reino Unido, poderiam ser enquadrada­s na categoria descrita por ela.

Mesmo que tenha ganhado os holofotes em seu país ao ser comparado a uma espécie de novo Eminem, as semelhança­s param na aparência e no jeito gritado de cantar.

Seus versos, bem distantes daqueles do rapper de Detroit, constroem uma crônica ácida da vida em meio aos escombros pós-soviéticos e conquistar­am a admiração do público russo.

“Vejo tudo que está acontecend­o agora como uma segunda guerra fria”, diz Oxxxymiron.

“Os Estados Unidos e a Rússia vêm se provocando e vemos aqui uma propaganda contra o Ocidente, mas isso é por causa de pessoas tentando lavar o cérebro de seus povos.”

Nesse ponto, o pop satírico do Leningrad, uma banda que viralizou por causa de seus clipes hilários, também acabou se aproximand­o da lógica e da acidez desses rappers ao atacar a propaganda oficial das autoridade­s russas sob Putin.

Em sequências em que toda a ação acontece de trás para a frente, como um filme rebobinado, um dos vídeos do grupo mostra uma perseguiçã­o policial invadindo um circo em que tudo dá errado —uma cabeça decepada rola pelo chão, um tigre devora uma bailarina e sangue voa para todos os lados, num misto de Baz Luhrmann com Quentin Tarantino.

“Você liga a TV aqui e vê que as coisas estão todas no lugar. Você entra na internet e vê que o país é um beco sem saída. Entre esses dois polos está o cara normal, que não se interessa”, diz Sergey Shnurov, vocalista do Leningrad.

“Os protestos aqui falam disso. E os jovens devem protestar, porque a juventude serve para isso.”

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Ira Lupu O rapper russo Ivan Dryomin, conhecido como Face, que tem as palavras ‘amor’ e ‘ódio’ tatuadas no rosto

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