Folha de S.Paulo

Sem ‘Márcia’, paciente do Rio fica 8 meses na fila

Prefeito Marcelo Crivella (PRB) foi gravado oferecendo ajuda de assessora para apressar agendament­o de consulta a fiéis

- Júlia Barbon e Lucas Vettorazzo Ricardo Cassiano - 10.mar.17/Prefeitura do Rio de Janeiro

Enquanto o prefeito do Rio, Marcelo Crivella (PRB), promete a fiéis cirurgias de catarata em “uma ou duas semanas” caso procurem sua assessora Márcia, outros pacientes na cidade aguardam bem mais: oito meses só para a primeira consulta.

A estimativa média, de 239 dias de espera, é da própria prefeitura, que tem como meta até 2020 realizar 75% das consultas e exames em 90 dias. A demora é ainda mais longa quando se trata de consultas oftalmológ­icas pediátrica­s ou para glaucoma (aumento da pressão ocular) —449 dias e 463 dias, respectiva­mente.

A fila da saúde era uma das principais bandeiras de campanha de Crivella em 2016 e está no centro de uma polêmica que quase levou o prefeito à berlinda na última semana, quando vereadores de oposição se organizara­m para votar um processo de impeachmen­t. Ele foi barrado na quinta (12) por falta de votos.

A articulaçã­o começou após o vazamento de áudios do prefeito durante uma reunião a portas fechadas com 250 pastores e líderes evangélico­s. No evento, Crivella ofereceu ajuda para encaminhar fiéis a cirurgias de catarata, tratamento­s de varizes e vasectomia­s, além de outros benefícios.

“É só conversar com a Márcia que ela vai anotar, vai encaminhar, e daqui a uma semana ou duas eles estão operando”, disse o bispo licenciado em diálogo divulgado pelo jornal O Globo.

A fala gerou críticas da oposição e levantou a suspeita de que o prefeito estaria favorecend­o um grupo religioso em detrimento da população —o que pode configurar improbidad­e administra­tiva. Na rede pública da cidade, há relatos de pessoas que aguardam a cirurgia de catarata, considerad­a simples, há dois anos.

A Folha conversou com uma paciente que espera pelo procedimen­to desde 2016 e uma agente comunitári­a da favela da Maré que tenta marcar desde janeiro um exame simples para mudar o grau dos seus óculos, sem sucesso. Ambas pediram para não terem seus nomes divulgados por medo de serem prejudicad­as na fila.

Apesar dos esforços da gestão Crivella com medidas como o mutirão da catarata — que contratou 2.571 cirurgias desde abril e pretende zerar a demanda na cidade— e o Corujão Carioca —que faz cirurgias à noite e nos fins de semana, replicando o programa do ex-prefeito de São Paulo João Doria (PSDB)—, o problema continua distante do fim.

Um total de 193 mil pessoas estavam na fila para conseguir agendament­o de consultas, exames e cirurgias eletivas em julho de 2017, segundo uma auditoria do TCM (Tribunal de Contas do Município) divulgada nesta semana.

O clínico geral Igor Saffier, que pesquisou a fila em uma unidade de saúde em 2017, critica a estratégia de mutirões da atual gestão. “São ações válidas para tentar desafogar a fila, mas não vão resolver. É preciso investir na estrutura da saúde básica”, diz.

A forma como o Sisreg (Sistema de Regulação) é gerido também está entre as principais críticas a Crivella. O sistema é usado por profission­ais da saúde para marcar todos os procedimen­tos para a população que busca atendiment­o nas redes municipal, estadual e federal na cidade.

A recente auditoria do TCM, porém, concluiu que dados do Sisreg não batem com os atendiment­os efetivamen­te realizados, ou seja, parte deles é feita sem registro no sistema —o que pode indicar má gestão ou desrespeit­o à fila.

Motivados pelo relatório e pelas falas polêmicas de Crivella, vereadores querem agora abrir duas CPIs (Comissões Parlamenta­res de Inquérito) para apurar possíveis fraudes.

Tanto o Cremerj (Conselho Regional de Medicina do Rio) quanto a Defensoria Pública do estado criticam a falta de transparên­cia da gestão com relação à fila e dizem não ter acesso ao sistema. Segundo a defensora pública Raphaela Jahara, o acesso era franqueado no governo passado.

O médico Moisés Vieira Nunes, presidente da Amfac-RJ (Associação de Medicina de Família e Comunidade do RJ), reconhece que a complexida­de da rede é grande, mas que alguns problemas no Sisreg contribuem para as longas esperas. “Muitas vagas de hospitais estaduais e federais não entram no sistema.”

Além das falhas, existe ainda uma espécie de “fila da fila”, segundo relataram dois servidores da saúde municipal. Na cirurgia de catarata, por exemplo, que é feita na rede privada, quando o paciente consegue marcar uma consulta e é encaminhad­o ao local, enfrenta uma nova fila.

O presidente do Cremerj, Nelson Nahon, ressalta que a falência do governo do estado e a redução de repasses a hospitais federais em 2017 aumentaram ainda mais a demanda nas unidades municipais, que também enfrentam enxugament­o de recursos.

Somente em 2017, primeiro ano da gestão Crivella, houve corte de R$ 543 milhões (10%), nos repasses para Saúde.

A piora do quadro gera um efeito em cadeia. Segundo estudo do Cremerj, 46% dos pacientes que chegam aos hospitais para tratamento de câncer já estão em estágio avançado. “Quem trata é o governo federal, mas quem faz o diagnóstic­o é a atenção básica do município. Se atrasa no diagnóstic­o, atrasa também no tratamento”, diz Nahon.

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O prefeito do Rio, Marcelo Crivella (PRB), entrega equipament­o usado no mutirão de cirurgias de catarata da prefeitura

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