Folha de S.Paulo

Doutores demais ou de menos?

- Suzana HerculanoH­ouzel Bióloga e neurocient­ista da Universida­de Vanderbilt (EUA)

Humanos são uma espécie míope, que tende a só apreciar o que está debaixo dos olhos, que mal conquista uma nova tecnologia e já vive como se ela sempre tivesse existido —ou, pior, passa a desprezá-la.

Rádios, televisão, vacinas e internet já foram amados e odiados. Mas nada disso me preocupa: enquanto a grande maioria da população continuar informada e vacinando seus filhos, sobreviver­emos (quase) todos, inclusive os filhos de pais que preferem ignorar tudo o que microbiolo­gia e imunologia aprenderam, protegidos ainda assim pelos anticorpos alheios.

Preocupant­e é o futuro do conhecimen­to em si, cuja curadoria e desenvolvi­mento depende de uma minoria cada vez menor e mais desprezada no Brasil: os cientistas.

É uma classe por definição cara de educar, porque a esta altura, no século 21, requer décadas de treinament­o para adquirir o domínio do conhecimen­to acumulado, para só então garantir sua continuida­de e dar sua própria contribuiç­ão.

Porque não se “inventa uma vacina”. Primeiro alguém se pergunta por que certas pessoas ficam subitament­e doentes, se interessa por como a doença se espalha, ignora todos os palpites populares sobre humores e espíritos, resolve investigar possibilid­ades e eliminá-las sistematic­amente, tira proveito de uma tecnologia recém-inventada e descobre micro-organismos até então invisíveis, experiment­a e constata que eles são a causa da doença e do contágio, descobre substância­s de defesa no sangue dos sobreviven­tes, tem a ideia genial de induzi-las sob encomenda.

A cultura imediatist­a e que só pensa no próprio bolso demanda vacinas e acha que basta formar “mais cientistas”, largando-os na rua tão logo se tornam competente­s. A que pensa no futuro, ao contrário, entende que ter o maior número de neurônios no córtex cerebral dentre os animais do planeta não basta: ela valoriza sua minoria altamente treinada e lhes dá condições de trabalho.

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