Folha de S.Paulo

Dez anos no Tibete

Fotógrafo americano Thomas Laird publica livro após passar uma década a registrar murais tibetanos que narram história milenar do budismo

- Isabella Menon

são paulo Ao entrar em templos budistas no Tibete, há grande chances de os murais dali, que representa­m a vida de Buda e os segredos da meditação, passarem despercebi­dos. Muitos deles estão escondidos atrás de pilares ou no topo de janelas, sem visibilida­de para os visitantes.

Esses murais, que retratam mil anos da história da região, foram documentad­as pelo fotógrafo americano Thomas Laird, 65, que deixou sua terra natal em 1972, aos 18 anos, para viver no Oriente.

Laird conta que, quando era jovem, não se interessav­a por aquilo que os Estados Unidos poderiam proporcion­ar a ele: “Ou eu entraria na universida­de ou acabaria trabalhand­o em uma fábrica”, afirma, em entrevista à Folha.

Ele encontrari­a seu propósito de vida a mais de 12 mil km de casa. Primeiro, Laird partiu rumo à Índia. Logo depois, foi ao Nepal, onde viveu por 14 anos. Ali, conheceu refugiados tibetanos e teve o primeiro contato com aquela cultura. A partir de então, passou a aprender sobre práticas de meditação.

Esse foi seu primeiro contato com o Tibete, região que só viria a conhecer em 1986 e que provocaria nele o interesse pelos murais dos templos.

Naquela época, Laird fotografav­a para as revistas Time e Newsweek e para o periódico francês Le Figaro.

Também fez fotos para o The New York Times, a National Geographic e a Geo.

Desde 2008, ele se dedica ao registro de murais tibetanos, revelados no livro “Murals of Tibet”, publicado em março deste ano em edição de luxo pela Taschen.

Segundo o autor, é a primeira vez que esses murais podem ser vistos fora dos templos tibetanos.

A edição de luxo teve baixíssima tiragem, apenas 998 exemplares, e as edições custam de US$ 12 mil a US$ 30 mil (de R$46 mil a R$ 116 mil).

“Infelizmen­te, as coisas só ganham importânci­a de acordo com o que elas valem”, afirma o artista.

Ele compara o alto preçocom a escultura Pietà, de Michelange­lo. “Ninguém perguntou a ele se haveria uma opção da obra menor e mais acessível, porque a original não tem a ver com o preço, mas sim com uma incrível experiênci­a.”

Quem adquirir a obra receberá dois livros. O maior, com dimensões de 50 cm X 70 cm, vem assinado e abençoado por Dalai Lama, líder religioso do budismo tibetano. “Quando ele perguntou por que deveria assinar tantos volumes, respondi que era para valorizar o livro. Se houver um incêndio, os donos com certeza vão se lembrar de salvá-lo.”

O segundo e menor volume (35 cm X 25 cm) é composto por imagens e textos, como a introdução do próprio fotógrafo e explicaçõe­s sobre a cultura tibetana, a história do país e dos murais escrita pelos estudiosos da religião Robert A. F. Thurman, Heather Stoddard e Jakob Winkler.

Além disso, um banquinho de apoio para as obras, assinado pelo arquiteto e vencedor do prêmio Pritzker Shigeru Ban, também está incluído no pacote.

Na opção mais cara, com apenas 40 volumes disponívei­s, o colecionad­or recebe ainda uma fotografia de um dos 300 murais em tamanho real.

Estes, conta o autor, foram durante anos uma forma de a população do Tibete deixar sua marca no mundo e aprender. Até os anos 1950, apenas a elite tinha acesso à educação, enquanto os servos e escravos —a maioria da população— não sabiam nem ler nem escrever.

A região conseguiu reverter o cenário de analfabeti­smo, que chegava a 95% da população no fim dos anos 1990. Hoje, há 1.100 instituiçõ­es de ensino em todos os níveis (incluindo quatro superiores), e o analfabeti­smo caiu para 34%.

É comum ver monges usando os murais para ilustrarem aulas, diz Laird. O próprio Dalai Lama os usou em sua educação, um primeiro passo para se tornar um homem letrado.

Ao saber desse impacto na vida do líder, o americano decidiu que dedicaria uma dé- cada ao projeto. Não foi fácil. Por causa da localizaçã­o e da dificuldad­e em retratar grandes e detalhadas imagens, ele precisou desenvolve­r técnicas especiais —uma delas envolve a multicaptu­ra de retratos para depois uni-los em uma única imagem.

Para o artista, além de deixar uma herança para o futuro, essa foi uma forma de tornar visível obras que podem ser levadas a museus —costume do início do século 20.

Um exemplo foi o caso do alemão Albert von Le Coq, que em 1910 se apaixonou por um mural no templo Bezeklik, na China, e o levou para um museu em Berlim.

A obra foi destruída em um bombardeio durante a Segunda Guerra Mundial. “Se ele não o tivesse levado, isso não teria acontecido”, afirma Laird. “Eles [museus] só dão importânci­a se algo tem valor comercial.”

Para Marcelo Guerreiro, praticante do templo budista Odsal Ling, em São Paulo, a forma de Laird divulgar a arte tibetana não contraria os ensinament­os budistas. “Apesar de tudo ser impermanen­te, a filosofia diz que temos que viver da melhor forma possível.”

Autografad­a pelo Dalai Lama, a edição de luxo tem tiragem de apenas 998 exemplares e custa de US$ 12 mil a US$ 30 mil

 ?? Thomas Laird/Divulgação ?? Buda do Norte, que representa a atividade iluminada, no livro ‘Murals of Tibet’
Thomas Laird/Divulgação Buda do Norte, que representa a atividade iluminada, no livro ‘Murals of Tibet’
 ??  ??
 ?? Fotos Thomas Laird/Divulgação ?? Pintura mostra a prática de um tipo de ioga chamado yantra, que significa círculo mágico
Fotos Thomas Laird/Divulgação Pintura mostra a prática de um tipo de ioga chamado yantra, que significa círculo mágico
 ??  ?? ‘Lord and Lady of the Cemetery’, do final do séc. 19
‘Lord and Lady of the Cemetery’, do final do séc. 19
 ??  ?? Dalai Lama com o livro ‘Murals of Tibet’
Dalai Lama com o livro ‘Murals of Tibet’

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil