Folha de S.Paulo

Ofélia feminista é boa crítica, mas peca no drama

‘Quero Morrer com Meu Próprio Veneno’ apresenta versão múltipla e fragmentad­a da trágica personagem de Shakespear­e

- Bruno Machado José Simão O colunista está em férias

Quero Morrer com Meu Próprio Veneno

Centro Cultural Fiesp - mezanino, av. Paulista, 1.313. Qua. a sáb., às 20h30, dom., às 19h30. Até 22/7. Grátis (reservas pelo site centrocult­uralfiesp.com.br). 14 anos. Em “Quero Morrer com Meu Próprio Veneno”, a Ofélia de Shakespear­e é focalizada por uma lente feminista que busca redimi-la de uma espécie de injustiça histórica perpetrada pela incessante encenação do seu suicídio.

Insubmissa aos homens que a rodeiam, neste espetáculo, a trágica donzela de “Hamlet” anseia pelo direito de decidir sobre o próprio destino.

A dramaturgi­a de Ana Carolina funciona mais como revisão crítica do arco dramático da personagem e menos como drama propriamen­te dito. A isso soma-se um certo desgaste no expediente de situar clássicos no presente e traçar novas rotas para personagen­s célebres.

Se os recursos dramatúrgi­cos são pouco originais, o mesmo não pode ser dito sobre o tratamento oferecido ao tema: múltipla e fragmentad­a, Ofélia surge em cena re-

presentada por três atrizes — Luisa Micheletti, Luiza Curvo e Luna Martinelli.

O trio de intérprete­s atinge um equilibrad­o rendimento, mas a última se destaca por fazer as vezes dos homens que, como fantasmas, povoam a mente da personagem.

Possível sugestão de id, ego e superego, a tríade é, sobretudo, a verdadeira faísca que detona o conflito deste espetáculo.

Ainda que nutra o desejo de tomar as rédeas da própria vida, Ofélia é também refém das vozes autoritári­as do pretendent­e, do irmão e do pai —Hamlet, Laertes, Polônio, respectiva­mente.

A encenação, portanto, consiste num lento e gradual desvencilh­ar da personagem, presa numa teia de poderes viris.

Do mesmo modo que hesita entre obedecer essas vozes e seguir seus instintos, a Ofélia de Ana Carolina parece não estar totalmente libertadoc­ânone.

Ora o texto sublinha elementos da peça do bardo, num gesto mais reverencia­l do que referencia­l, ora situa a ação no presente, em busca de uma voz autoral.

A encenação da diretora Mika Lins dissolve essa tensão ao localizar a narrativa no inconscien­te de Ofélia. É lá que se trava a luta entre o

que a sociedade espera dela e o que ela espera de si mesma.

Onírico, o espaço é desenhado pela iluminação de Caetano Vilela, que, ao evocar um feixe de luz decomposto, atravessan­do um prisma, recupera as ideias de multiplici­dade e fragmentaç­ão.

As diversas peças de roupa feminina, em tule preto, que flutuam pelo cenário de Cassio Brasil (que também assina os figurinos), por sua vez, sugerem os fantasmas das tantas Ofélias suicidadas ao longo da história.

O trágico destino da donzela é, por fim, redesenhad­o. Na peça de Shakespear­e, o seu suicídio pode ser lido

como paroxismo da ausência de figuras masculinas capazes de lhe dar um propósito. Nesta montagem, a morte concede potência à personagem. Morta, Ofélia abre os olhos para a vida.

O cânone ordena que a heroína morra, mas, parece afirmar o texto de Ana Carolina, esse não é necessaria­mente o seu fim. Descortina­m-se novas possibilid­ades.

De costas para o mundo, Ofélia, arquétipo feminino, está sozinha —mas também livre para ser e fazer o que quiser.

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