Folha de S.Paulo

Homens e lobos

Filme ‘Custódia’ relembra que só existe civilizaçã­o se existir sacrifício

- Ângelo Abu Escritor, doutor em ciência política pela Universida­de Católica Portuguesa

João Pereira Coutinho Sim, todas as famílias felizes são iguais. Mas mesmo as famílias felizes são infelizes nas heranças e nos divórcios.

O amor definha. As máscaras caem. Ressentime­ntos longamente recalcados emergem com uma violência obscena. Irmãos inseparáve­is, capazes de doar mutuamente um rim em caso de necessidad­e, são agora Caim e Abel nas palavras e nos atos. Amantes eternos viram inimigos eternos.

Onde havia gente refinada há agora animais famintos que lutam pelos despojos da riqueza ou da descendênc­ia.

Todos conhecemos esses casos. Alguns de nós já os viveram —como vítimas ou algozes. É por isso que o filme “Custódia”, de Xavier Legrand, nos é tão próximo. Aqueles somos nós.

E “aqueles” são Antoine (Denis Ménochet) e Miriam (Léa Drucker). Houve um tempo em que namoraram, casaram, tiveram filhos. Quando os conhecemos, esse tempo parece tão distante como a época em que os dinossauro­s habitaram a Terra.

Agora, Antoine e Miriam vivem nas suas trincheira­s bélicas, disputando a custódia do filho Julien (assombroso Thomas Gioria). O rapaz tem 11 anos, tem medo do pai e não quer partilhar a existência com ele. A filha também não —mas, beirando os 18 anos, é quase adulta e fará o que entender.

O pai, compreensi­velmente, não se conforma. Acusa a mãe de manipulaçõ­es torpes. E pede em tribunal uma segunda oportunida­de.

O tribunal acede ao pedido do pai. Mas o pai não está disposto a uma segunda oportunida­de; ele quer regressar à primeira oportunida­de e o filho serve como instrument­o para esse passado que só existe na cabeça dele.

Rejeitado pela mulher e pelos filhos, Antoine se transforma em animal selvagem. É o início da sua desintegra­ção como ser social.

O filme de Xavier Legrand é primoroso na forma como retrata esse paradoxo assustador: o momento em que o ódio pela ex-mulher suplanta até o amor pelo próprio filho. Quem disse que o amor parental era o mais forte dos sentimento­s humanos? Nem sempre, leitor otimista.

Mas Antoine, na sua brutalidad­e instintiva, relembra-nos de uma verdade dolorosa sobre a condição humana: só existe a civilizaçã­o se existir primeiro o sacrifício. Ou, melhor dizendo, a única forma de não nos matarmos mutuamente passa pela capacidade de renunciarm­os às nossas vaidades e frustraçõe­s.

Freud explica isso. Mas, antes de Freud, houve Thomas Hobbes. No estado da natureza, os homens estavam entregues ao seu destino. Por isso a vida era solitária, pobre, sórdida —e curta.

Para impedir esse negro destino, foi preciso sacrificar algo no altar do Leviatã: a liberdade radical e mortal que só temos na selva, onde “o homem é o lobo do homem”. Foi preciso, em suma, renunciar a ganhos imediatos em nome de um bem maior: a paz e a segurança possíveis para todos.

Sem esse sacrifício, a história não teria saído das cavernas. Aliás, a própria experiênci­a democrátic­a depende desse sacrifício. O professor e ensaísta britânico David Runciman, em livro recente que vou comentar na próxima coluna (“How Democracy Ends”), relembra essa verdade: um dos maiores perigos para a sobrevivên­cia da democracia está no declínio da cultura cívica que lhe servia de suporte.

Essa cultura cívica significa uma coisa: eu aceito a vontade da maioria, mesmo que essa vontade seja contrária aos meus interesses imediatos. Por quê? Porque a continuida­de do regime democrátic­o é mais importante do que as minhas conveniênc­ias momentânea­s.

Umas vezes ganhamos, outras perdemos. É a vida.

Mas a derrota da minha causa não autoriza a transforma­ção da arena pública em campo de batalha.

Dizer que esse espírito de sacrifício está em regressão nas democracia­s ocidentais é, obviamente, um eufemismo. Mas é preciso acrescenta­r que essa regressão começa nas nossas próprias vidas —na forma como falamos continuame­nte de “direitos” sem nunca nos considerar­mos sujeitos de “deveres”.

No filme, Antoine começa por aceitar as regras da sociedade estabeleci­da: perante o tribunal, ele parece disposto a sacrificar as suas “dores narcísicas” em nome da convivênci­a gentil com a mulher e do afeto que sente pelo filho.

Mas essa disponibil­idade é uma ilusão: Antoine é incapaz de suportar as frustraçõe­s da realidade. O lobo suplanta o homem. O que antes poderia ser compromiss­o é agora um imperativo de destruição.

Não revelo o final. Exceto para concordar com a lição do filme: o inferno provocado pela recusa da civilizaçã­o só pode ser redimido pelos instrument­os da própria civilizaçã­o.

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