Folha de S.Paulo

Menu-degustação é via-crúcis gastronômi­ca de onde só se quer ir embora

- -Marcos Nogueira

Talvez você seja fã de Tarantino. Ou de Lars Von Trier —há gosto para tudo. Mas suponhamos um certo fetiche pela obra de David Lynch. Assistir a um filme dele é moleza. “A História Real”, do tiozinho que cruza os EUA num cortador de grama, chega a ser agradável.

Agora, pense só. Uma maratona cinematogr­áfica começando por “O Homem Elefante”, lá pelas 19h, e prosseguin­do noite adentro com “Veludo Azul”, “Duna”, “Coração Selvagem”. Pausa para o xixi da madrugada, “Cidade dos Sonhos”, e, para saudar a alvorada, fragmentos de “Twin Peaks”.

Um programa assim agrada a meia dúzia de malucos com interesses muito específico­s. Para o resto da humanidade, é uma provação.

A mesma coisa com os menus-degustação oferecidos por chefs de prestígio.

Não me refiro a cardápios com quatro ou cinco etapas. Falo de 20, 25, 30 microprato­s em sequência. Cada um deles, uma estação da via-crúcis gastronômi­ca.

Essas degustaçõe­s são portfólios dos chefs. O LinkedIn da gastronomi­a. Para o autor, é interessan­te servi-las, pois atraem a atenção. Para quem paga pelo jantar, pode ser bacana em alguns contextos.

Quando alguém tem uma oportunida­de rara de conhecer um restaurant­e em particular. Optar por um prato pode ser arriscado —e se a escolha for um desastre?

Ou então quando um grupo se reúne para esse fim. O assunto da mesa vai ser comida porque todos querem falar de comida. Para quem quer só ter uma noite bacana, tudo muda de figura.

Jantares de degustação são longos e excruciant­es. Você passa três, quatro horas sentado. A bunda dói. O sono vence a fome. Só quer ir embora.

O garçom interrompe a conversa a cada cinco minutos. Seja com um prato novo, seja para encher a taça. “Mais vinho, senhor?” “Não, amizade, quero fazer esta garrafa durar a noite toda.”

Entope-se de tanto comer. Engole o primeiro amusebouch­e com avidez, pensando: “miseráveis, vou sair daqui com fome”. No 20º serviço, antes do prato de carne e da primeira pré-sobremesa, não aguenta mais ver comida.

Mas come assim mesmo. Sair antes do fim seria uma ofensa ao chef. Não sei se alguém já pediu para embrulhar os sete pratos finais do banquete. Parece-me inadequado.

Quando um chef serve um menu de 17 ou 23 etapas, desprotege flancos e revela cacoetes. O cliente nota que o molho da ostra é igual ao do tartare, que o mesmo peixe é servido em cinco etapas, do rabo à bochecha, que o cozinheiro aproveitou o preço baixo da abóbora no sacolão.

Enfim, uma degustação é bolada para fascinar com a magia dos múltiplos sabores —mas costuma ter o efeito inverso. Ao expor as entranhas do restaurant­e, rouba a graça da experiênci­a.

Putz, esqueci de falar do preço. Fica para a próxima.

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