Folha de S.Paulo

Nicaraguen­ses relatam torturas e desapareci­mentos

Moradores relatam tortura infligida por forças leais ao governo, além de detenções arbitrária­s

- -Fabiano Maisonnave

Um dia após ofensiva do governo Daniel Ortega, moradores de Masaya, bastião opositor, relataram torturas e sumiço de parentes, informa Fabiano Maisonnave. Segundo ONG, ao menos nove morreram ontem.

Pernas cortadas com bisturi, o filho único de 16 anos desapareci­do e uma panela de pressão roubada.

Um dia depois da ofensiva das forças do governo Daniel Ortega, a vendedora ambulante Rezaye (nome fictício) chora ao lembrar os momentos vividos no bairro de Monimbó, em Masaya (30 km de Manágua), principal bastião dos protestos oposicioni­stas.

Desde o final da tarde de terça-feira (17), policiais e paramilita­res mascarados controlam Monimbó em patrulhas, montados em camionetes, todos com armas de cano longo.

As barricadas, feitas com concreto retirado do pavimento, foram destruídas ou abandonada­s.

Ao menos nove pessoas morreram durante confrontos em Masaya na terça, segundo a Associação Nicaraguen­se Pró-Direitos Humanos (ANPDH): cinco paramilita­res, três manifestan­tes e um policial. Um jovem está internado em estado grave.

“Enquanto me cortavam, perguntava­m onde estava o meu filho e o o nome dos demais meninos”, conta Rezaye, 38, enquanto mostra as pernas machucadas. “Cortavam e diziam: ‘Fala ou te matamos’.”

A sessão de tortura, relata ela, ocorreu por volta das 10h e durou dez minutos. “Eles me jogaram no chão, me levantaram e me jogaram de novo. Eram três: dois de camisa azul [paramilita­res] e um vestido de preto [policial].”

Mas a ambulante já não sabia onde estava o seu filho, estudante do ensino médio. Quatro horas antes, ele havia fugido a pé, levando apenas uma jaqueta. “Tenho medo. Fui dormir fora de casa, temo que voltem a me procurar.”

O filho dela pode estar na lista dos pelo menos 60 moradores de Masaya desapareci­dos desde o confronto de terça, segundo a ANPDH.

Quarta-feira (18) foi dia de enterrar mortos. A despedida do operário têxtil Erick Jimenez, 34, ocorreu no cemitério Campo Santo, no próprio bairro. “Às 6h, os paramilita­res e policiais do batalhão de choque estavam espalhados por todo Monimbó”, conta a tia Nelly Lopez, 36.

A dona de casa afirma que Jimenez saíra para comprar comida quando começou o tiroteio perto da casa da família.

“Uma vizinha chegou tremendo e disse que o meu sobrinho estava caído diante do portão. Saí no meio do tiroteio. A Virgem me cobriu com o seu manto porque nenhuma bala me roçou. Eu o levantei e o abracei e disse: ‘Mataram o meu menino’”, conta, com os olhos marejados.

“Eles gritavam ‘onde estão os colhões de Monimbó?’ e levantavam as armas”, lembra. “Só me restou deitar ao lado do meu sobrinho e me encomendar ao Senhor [pedir proteção na morte].”

A tia disse que participou das marchas contra Ortega para exigir a liberação de conhecidos presos ao longo dos três meses de protestos contra o governo.

“Eles tiram as pessoas das casas para prender injustamen­te, para desaparece­r com elas. As mães vão ao [centro de detenção] El Chipote e não os encontram. Eles os prendem em lugares clandestin­os”, afirma Lopez.

Os protestos contra Ortega completara­m três meses nesta quarta (18). No início, o motivo era a reforma da Previdênci­a, que cortava benefícios e ampliava contribuiç­ões.

O governo recuou do projeto, mas, diante da repressão violenta, as marchas passaram a exigir a renúncia do líder sandinista, no poder desde 2007. Cerca de 360 pessoas morreram durante os protestos, segundo a ANPDH, na grande maioria civis.

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Marvin Recinos/AFP Após confrontos com manifestan­tes antigovern­o, paramilita­res descansam na cidade de Masaya, na Nicarágua
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