Folha de S.Paulo

Brasil não funciona mais como âncora da estabilida­de

- Matias Spektor Professor de relações internacio­nais na FGV. Escreve às quintas.

A norma democrátic­a está rachada e conflitos pipocam por toda a vizinhança, como na Nicarágua, mas o Brasil não mais funciona como âncora da estabilida­de regional.

“Não podemos admitir novas aventuras antidemocr­áticas [em nosso continente]”, disse Lula no Palácio do Planalto. Era julho de 2010, e o presidente estava no auge de sua influência pessoal.

Enquanto se arrumava para tirar foto oficial ao lado de Daniel Ortega, presidente da Nicarágua, decidiu fazer uma brincadeir­a: “Com certeza vai ter manchetezi­nha amanhã: Presidente­s do ‘eixo do mal’ celebram encontro”.

Naquele momento, o auge não era apenas da influência pessoal do presidente, mas também da capacidade de o Brasil moldar seu ambiente externo.

O país estava longe de ser uma potência regional clássica. Não tinha recursos militares para impor sua vontade à marra na vizinhança, como o faz a Rússia a sua volta.

Tampouco tinha disposição para custear instituiçõ­es regionais densas e com capacidade de resolver de modo eficaz os problemas típicos da ação coletiva, como o faz a Alemanha na Europa.

No entanto, o Brasil tinha, sim, condições de organizar o seu entorno regional.

Parte dessa história era econômica. O ABC paulista virara o centro de gravidade da atividade industrial na América do Sul, e o país gozava da posição de principal comprador, vendedor e investidor em seus principais seus vizinhos.

Mais que isso, o ajuste fiscal exitoso de FHC e do primeiro governo Lula haviam arrumado as contas públicas, principal recurso de poder do Brasil no sistema regional. Contas arrumadas, afinal, alinham as moedas dos vizinhos ao real e abrem as portas para um tipo de interdepen­dência econômica que é sempre benéfica aos interesses brasileiro­s.

Parte da história era política. O Brasil da época havia construído um acervo sólido de contribuiç­ões à estabilida­de regional. Montara uma parceria inédita com a Argentina e criara uma rede de relacionam­entos antes impensável. A integração regional ocorria por meio de grandes obras de infraestru­tura com capital e tecnologia do país.

Isso, por sua vez, permitia ao Brasil jogar seu peso em favor das regras do jogo que mais lhe convinham, como é o caso da norma da democracia.

Aquele mundo, entretanto, acabou. E com sua morte chegou ao fim também o ordenament­o regional inventado em Brasília desde os primeiros anos da Nova República.

Nossa incapacida­de de reagir ao descenso da Nicarágua de Ortega ao autoritari­smo mais escancarad­o —assim como ocorreu com a crise da Venezuela— apenas ilustra o problema.

A norma democrátic­a está rachada e novos conflitos pipocam por toda a vizinhança, mas o Brasil não mais funciona como âncora da estabilida­de regional.

Um dia, essa situação será revertida. Por enquanto, trata-se do fim de uma era.

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