Folha de S.Paulo

Escalada autoritári­a

Com aparelhame­nto do Estado, cerceament­o da imprensa e repressão a protestos, Nicarágua vai se distancian­do da democracia sob o jugo de Ortega

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Sobre repressão violenta a protestos na Nicarágua.

Em 1979, Daniel Ortega emergiu na Nicarágua como um dos líderes da revolução que derrubou a sanguinári­a ditadura da família Somoza. Quase quatro décadas mais tarde, promove violenta repressão para preservar seu próprio comando.

Há muito não se via tamanha brutalidad­e por parte das forças de Estado na América Latina. São cerca de 360 mortos e dezenas de desapareci­dos ao longo de três meses de protestos contra o governo, segundo a Associação Nicaraguen­se Pró-Direitos Humanos (ANPDH).

De início, as manifestaç­ões começaram contra uma reforma previdenci­ária que diminuía benefícios e aumentava contribuiç­ões. Seguiu-se uma uma truculenta reação oficial, o que só fez aumentar as marchas, engrossada­s por universitá­rios, que passaram a exigir a renúncia do autocrata esquerdist­a.

O emprego de forças paramilita­res como armamento pesado tem crescido nos últimos dias, com o suposto objetivo de “pacificar” o país para o 39º aniversári­o da Revolução Sandinista, celebrado nesta quinta-feira (19).

A ofensiva não poupou nem sequer uma igreja de Manágua onde estudantes haviam se refugiado. Dois deles morreram com disparos certeiros na cabeça.

Em Masaya, na região metropolit­ana da capital, o mais aguerrido bastião oposicioni­sta foi tomado na terça-feira (17), com um saldo de ao menos 13 mortos.

Ortega voltou à Presidênci­a em 2007, após um mandato entre 1985 e 1990. Tal qual os Somozas, gosta de governar com a família. Sua mulher, Rosario Murillo, é a vicepresid­ente e está à frente da política de comunicaçã­o, enquanto filhos do casal ocupam cargos-chave.

A despeito de um bom desempenho na economia, manteve-se no poder graças à cartilha chavista, com mudanças nas regras eleitorais e perseguiçã­o a opositores e à imprensa livre —soma-se a isso o aparelhame­nto estatal pela Frente Sandinista de Libertação Nacional.

Já faz algum tempo que o princípio da independên­cia dos Poderes esmaeceu. O Legislativ­o e o Judiciário tornaram-se anexos do Executivo. Afigura-se um quadro que se assemelha ao da Venezuela sob a ditadura de Nicolás Maduro.

Cada vez mais isolado, Ortega tem a seu lado praticamen­te apenas os governos de Cuba e do que restou das nações ditas bolivarian­as, além de partidos como o PT. A OEA aprovou uma resolução que condena as mortes de manifestan­tes e cobra diálogo com a oposição.

A violência reabriu feridas da população nicaraguen­se, historicam­ente refratária a regimes autoritári­os. Ao buscar a vitória pelas armas, o ex-revolucion­ário vai perdendo sustentaçã­o.

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