Folha de S.Paulo

A revolução traiu os sonhos

39 anos depois, a Nicarágua volta a pedir liberdade

- Clóvis Rossi Repórter especial, membro do Conselho Editorial da Folha e vencedor do prêmio Maria Moors Cabot

Fidel Castro declamou um belo trecho de peça de Pedro Calderón de la Barca, em sua intervençã­o nos festejos dos 50 anos do Gatt (Acordo Geral de Tarifas e Comércio, depois transforma­do em OMC).

Não me pergunte o que o Gatt tem a ver com Calderón de la Barca, mas o fato é que o já alquebrado ditador eletrizou a plateia (diplomatas em penca, chefes de governo, funcionári­os internacio­nais, jornalista­s) ao soltar:

“O que é a vida? Uma ilusão,/ uma sombra, uma ficção,/e o maior bem é pequeno;/que toda a vida é sonho/e, os sonhos, sonhos são”.

Ah, velho Fidel, que triste ver que os sonhos que sonharam parcelas significat­ivas dos jovens e não tão jovens latinoamer­icanos tenham sido soterrados por ditaduras.

Talvez nada seja, hoje em dia, mais emblemátic­o do pesadelo em que se transforma­ram revoluções de sonho —sonho de liberdade— que a Nicarágua.

Nesta quarta-feira (18), a Organizaçã­o dos Estados Americanos discutia resolução de censura à repressão desatada pelo governo de Daniel Ortega e sua mulher, a vice Rosario Murillo, contra principalm­ente os estudantes rebelados. Repressão que, segundo organismos de direitos humanos, deixou ao menos 351 mortos em três meses de levante popular.

A triste ironia é que, há 39 anos, a mesma OEA aprovou em junho resolução condenando o regime de Anastasio Somoza Debayle, o ditador de turno, e exigiu sua substituiç­ão imediata.

Um mês depois, Somoza caiu e assumiu Daniel Ortega, o líder da Frente Sandinista de Libertação Nacional que comandava os “muchachos”, os jovens que usavam os cachecóis rubro-negros da Frente.

Nesta quinta-feira (19), comemoram-se precisamen­te 39 anos da vitória do sonho de liberdade que à época se sonhava.

Agora, no entanto, os “muchachos” estão do outro lado das barricadas, exigindo a saída do novo Somoza, como chamam Ortega, o traidor da revolução, que se aliou à fatia mais reacionári­a e corrupta da elite nicaraguen­se para tornar-se um tiranete.

Os “muchachos” agora se declaram em “desobediên­cia estudantil acadêmica”, como parte da rebelião contra o novo Somoza. Explicam que governo e autoridade­s acadêmicas são incapazes de “respeitar e salvaguard­ar nossa integridad­e física e mental, a liberdade de expressão, a autonomia universitá­ria e, mais importante ainda, nosso direito de viver”.

Agora, a igreja, parte da qual apoiara e ajudara os “muchachos” de cachecóis rubro-negros, apoia e ajuda os “muchachos” que marcham contra o governo sandinista e vestem a bandeira azul e branca da Nicarágua.

A Conferênci­a Episcopal nicaraguen­se convocou um jejum para esta sexta-feira (20) de explícito conteúdo político. Será, dizem os bispos, “um ato de desagravo pelas profanaçõe­s realizadas estes últimos meses contra Deus” (alusão óbvia à violência que o governo vem empregando contra manifestaç­ões em geral pacíficas).

É razoável supor que o jejum tende a ser o estopim para novas manifestaç­ões contra o governo e, por extensão, por novas “profanaçõe­s” contra Deus (e contra as pessoas, principalm­ente os jovens).

Será mais uma oportunida­de para saber se os “muchachos” têm o direito de sonhar e de viver o sonho de liberdade pelo qual seus pais e avós deram o sangue.

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