Folha de S.Paulo

Obra percorre objetivame­nte últimos passos dos Románov, mas cede a especulaçõ­es

- Irineu Franco Perpetuo

Autor: Robert Service.

Tradução: Milton Chaves de Almeida. Ed. Difel. R$ 79,90 (478 págs.)

Se você costuma comprar livro apenas pelo título, um alerta: “O Último Tsar”, de Robert Service, não é uma biografia de Nicolau 2º (1868-1918), da Rússia, no estilo dos escritos publicados no Brasil sobre Catarina, a Grande, e Pedro, o Grande, de Robert K. Massie —ou mesmo do antigo e sentimenta­l “Nicolau e Alexandra”, do mesmo autor, abordando o derradeiro casal real da Rússia, e adaptado para as telas em 1971.

Se a obra de Massie foi redigida há meio século, em plena Guerra Fria, quando Nicolau 2º era um dos grandes vilões da história oficial soviética, a de Service chega após o fim da URSS, com o monarca transforma­do em mártir pela Igreja Ortodoxa Russa no Exterior em 1981 —recebeu do Patriarcad­o de Moscou, em 2000, com mulher e filhos, o título de Portador da Paixão, atribuído a santos que padeceram por sua fé, devido a sua execução pelos bolcheviqu­es, em 1918.

Como bem sabe quem assistiu ao longa “Leviatã” (2014), de Andrei Zviánguint­sev, com a Igreja Ortodoxa não se brinca. No ano passado, a deputada Natália Poklónskai­a, do partido Rússia Unida (o mesmo de Putin), liderou uma campanha (malsucedid­a, porém muito barulhenta) pela proibição do filme “Matilda”, do diretor Aleksêi Utchítel, que retratava o caso amoroso de Nicolau 2º com a bailarina Matilda Ksechínska­ia.

Para o bem ou para o mal, o nome de Ksechínska­ia nem sequer aparece no livro. Tampouco devem ser esperados detalhes sobre momentos cruciais do reinado, como a Primeira Guerra Mundial (19141918), ou a controvers­a figura do místico Grigóri Raspútin (1869-1916) —que aparece na obra, mas tangencial­mente.

O historiado­r britânico de 70 anos limita judiciosam­ente seu objeto à investigaç­ão dos 16 últimos meses da família real russa, da deposição do trono pela Revolução de Fevereiro de 1917 até seu fuzilament­o. Ao longo de 49 capítulos, entremeado­s por um belo ane- xo de imagens, o leitor acompanha cada passo dos Románov rumo a seu fim.

Service procura caracteriz­ar cada membro do séquito, detalhando seu vaivém pelo país e as complexas disputas entre os bolcheviqu­es a respeito do que fazer com a família real. Faz isso recorrendo a fontes como depoimento­s de testemunha­s em inquéritos e os diários do monarca, que talvez constituam o principal mérito do livro.

O evidente anticomuni­smo de Service não se traduz em canonizaçã­o imediata do retratado. Muito pelo contrário: o historiado­r não esconde o antissemit­ismo de Nicolau nem a reprovação por algumas de suas políticas.

Service tampouco carrega nas tintas ao descrever o fim dos Románov —o relato objetivo do fuzilament­o da família real e de seu séquito em Iekaterinb­urgo já é por si só horripilan­te— nem dá crédito às hipóteses de fuga e sobrevivên­cia de membros da família.

Contudo, em algumas questões, Service faz a objetivida­de ceder à especulaçã­o. A parte do livro em que não resiste a sobrepor convicções a provas é a que trata da responsabi­lidade de Lênin no assassinat­o.

Embora afirme que não existe “nenhuma confirmaçã­o de que Lênin e Sverdlov tenham ordenado a execução de Nicolau e de sua família”, Service desenvolve uma argumentaç­ão longa e imaginativ­a para sustentar o contrário.

Enquanto não surgir documentaç­ão comprovand­o ou não a responsabi­lidade, sua arenga continua sendo mera especulaçã­o, pertencent­e antes ao domínio da ficção que ao da história.

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