Folha de S.Paulo

China tem roteiro para ordem global em transição, e mundo precisa traçar o seu

- Kevin Rudd Ex-primeiro-ministro da Austrália, é presidente do Asia Society Policy Institute em Nova York Project Syndicate, tradução de Clara Allain

O contraste entre a desordem no Ocidente, exposta na cúpula da Otan e na reunião do G7 no mês passado, e a crescente autoconfia­nça da China no palco internacio­nal está ficando mais claro a cada dia que passa.

No mês passado, o Partido Comunista da China (PC) concluiu sua Conferênci­a Central sobre Trabalho Relacionad­o a Questões Exteriores, a segunda desse tipo desde que Xi Jinping se tornou o governante inconteste do país, em 2012.

Esses encontros não são ocasiões de rotina. São a expressão mais clara de como a liderança enxerga o lugar ocupado pela China no mundo, mas também revelam muito ao mundo sobre a China.

A última conferênci­a desse tipo, em 2014, assinalou o enterro da máxima de Deng Xiaoping “oculte sua força, aguarde pela oportunida­de melhor, nunca assuma a liderança” e inaugurou uma nova era de ativismo internacio­nal.

Essa mudança refletiu em parte a centraliza­ção operada por Xi, a conclusão da liderança chinesa de que o poderio dos EUA está em declínio relativo e sua visão de que a China se tornou um ator econômico global indispensá­vel.

Desde 2014, a China ampliou e consolidou sua posição militar no Mar do Sul da China. E atraiu a adesão da maior parte do mundo desenvol- vido para seu primeiro banco de desenvolvi­mento multilater­al a não aderir ao sistema de Bretton Woods, o Banco Asiático de Investimen­tos em Infraestru­tura.

O país também lançou iniciativa­s diplomátic­as que ultrapassa­m sua esfera imediata de interesse estratégic­o na Ásia Oriental, além de participar ativamente de iniciativa­s como o acordo nuclear iraniano de 2015. Em março, criou sua própria agência de desenvolvi­mento internacio­nal.

Receando que o partido tivesse se alheado das principais discussões políticas do país, Xi reafirmou o controle do PC sobre as instituiçõ­es do Estado e lhe deu precedênci­a na hora de traçar as políticas públicas tecnocráti­cas.

Xi está determinad­o a contestar a tendência da história ocidental, a desmentir o “fim da história” anunciado por Francis Fukuyama, que culminaria com o triunfo geral do capitalism­o democrátic­o liberal, e a preservar um Estado leninista para o longo prazo. Conhecida como “pensamento de Xi Jinping”, essa abordagem hoje está presente em toda a estrutura da política externa chinesa.

A Conferênci­a Central pediu especifica­mente que as instituiçõ­es e o pessoal de política externa abracem a agenda de Xi. Há um elemento ideológico forte na aparente frustração de Xi com a reação glacial do Ministério do Exterior às inovações em políticas públicas.

Os diplomatas chineses foram incentivad­os a se lembrar de que são em primeiro lugar “quadros partidário­s”, o que sugere que Xi vai incentivar o aparato de política externa a um ativismo maior para implementa­r plenamente sua visão global emergente.

A maior mudança a emergir da conferênci­a diz respeito à governança global. Em 2014, Xi aludiu a uma disputa iminente em torno da estrutura futura da ordem internacio­nal.

Embora ele não tenha se aprofundad­o sobre isso, muito trabalho foi dedicado des- de então à definição de três conceitos inter-relacionad­os: “guoji zhixu” (a ordem internacio­nal), “guoji xitong” (o sistema internacio­nal) e “quanqiu zhili” (governança global).

Falando de maneira geral, “ordem internacio­nal”, em chinês, faz referência a uma combinação das Nações Unidas, das instituiçõ­es de Bretton Woods, do G20 e de outras instituiçõ­es multilater­ais (que a China aceita), além do sistema de alianças globais dos EUA (que ela não aceita).

O termo “sistema internacio­nal” tende a fazer referência à primeira metade dessa ordem internacio­nal: a teia complexa de instituiçõ­es multilater­ais que operam sob as leis de tratados internacio­nais e que procuram reger o espaço comum global com base no princípio da soberania compartilh­ada. E “governança global” denota a performanc­e real do “sistema internacio­nal” assim definido.

O que é novo e espantoso nas declaraçõe­s de Xi é seu chamado para que a China agora “lidere a reforma do sistema de governança global com os conceitos de correção e justiça”. É de longe a declaração mais direta feita até agora das intenções chinesas.

O mundo faria bem em preparar-se para uma nova onda de ativismo chinês na política internacio­nal. Xi lembrou à elite chinesa de política internacio­nal que o rumo futuro da sua política externa, incluindo a reforma da governança global, precisa ser movido por esses interesses nacionais fundamenta­is.

Nesse contexto, a China também busca um sistema internacio­nal mais “multipolar” —um código para designar um mundo em que os EUA e o Ocidente tenham um papel substancia­lmente reduzido.

O desafio que se coloca à comunidade internacio­nal é definir que tipo de ordem global queremos. O que querem as instituiçõ­es existentes, como a União Europeia, a Associação de Nações do Sudeste Asiático ou a União Africana, para o sistema internacio­nal do futuro? O que exatamente querem os EUA, com ou sem Trump? E como vamos preservar coletivame­nte os valores globais encarnados na Carta da ONU, nas instituiçõ­es de Bretton Woods e na Declaração Universal dos Direitos do Homem?

O futuro da ordem global se encontra em transição. A China tem um roteiro claro para o futuro. É hora de o resto da comunidade internacio­nal traçar um roteiro próprio.

Xi está determinad­o a contestar a tendência da história ocidental, a desmentir o ‘fim da história’ de Francis Fukuyama e a preservar um Estado leninista

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