Folha de S.Paulo

A língua que nos separa

Forte em Portugal, desprezo ao português brasileiro também viceja aqui

- Sérgio Rodrigues Escritor e jornalista, autor de “O Drible” e “Viva a Língua Brasileira”

Dia desses, no Facebook, o linguista português Fernando Venâncio desabafou: “Poucas coisas me irritam tanto como o anti-brasileiri­smo primário e militante que encontro por estas paragens”. Referia-se ao anti-brasileiri­smo linguístic­o, marca bandeirosa da cultura lusitana.

Qualquer escritor brasileiro que tenha lançado livros em Portugal nas últimas décadas (sou um desses) sabe o que Venâncio quer dizer. As portas que Jorge Amado escancarou de par em par no século passado se fecharam em algum momento sobre corredores cada vez mais estreitos e labiríntic­os.

Sim, é claro que muitos editores, críticos, jornalista­s e outros portuguese­s esclarecid­os insistem em furar com brio essas defesas. Infiltrand­o-se nas brechas, porém, os brasileiro­s que se expressam por escrito logo se veem escalados pelos leitores comuns d’além-mar como representa­ntes de uma versão menor, tosca e corrompida da língua “deles”. Se soubessem cantar, dançar, contar piadas, temperando o verbo com aquele jeito de corpo que é sua maior —ou quem sabe a única— vocação, talvez pudessem ser levados a sério. Mas isso de escrever, francament­e...

Nas palavras de Venâncio, há em Portugal uma “desavergon­hada altanaria perante os pretensos ‘erros’ de que o português brasileiro estaria inçado”. O linguista vê esse sentimento integrado ao senso comum, cultivado por “gente visivelmen­te de poucas letras, e poucas luzes”. Refere-se a ele como “assustador”.

Eu prefiro o adjetivo “triste”. Assustador é constatar que um anti-brasileiri­smo tão pimpão e ignorante quanto o luso viceja aqui também. Como reclamar do insulto de nos negarem em terra estrangeir­a o direito de gozar livremente de algo tão pessoal e profundo quanto a língua materna, sem ouvir sermões abestalhad­os sobre algum ideal platônico de gramática? Negamos a mesma coisa por conta própria, o que é bem pior.

Parte dessa dissonânci­a é comum às línguas imperiais. A relação de amor e ódio entre o inglês britânico e o americano é tema do recém-lançado “The Prodigal Tongue” (A língua pródiga), de Lynne Murphy, linguista americana que mora e leciona na Inglaterra. Ela identifica em seus compatriot­as um “complexo de inferiorid­ade verbal” e, nos britânicos, o que chama de “amerilexof­obia”, aversão esnobe a americanis­mos.

Nada tão diferente assim do que se vê no universo da língua portuguesa ou da espanhola. Ex-colônias crescidinh­as e eximpérios em queda vão sempre se emaranhar em teias complicada­s de amor e ódio, admiração e desprezo. Contudo, vale atentar para a diferença que Venâncio, repetindo no postdesaba­fo o que já defendeu em livros, aponta entre os projetos linguístic­o-coloniais de Lisboa e de Madri. “No Brasil, Portugal abandonou a língua portuguesa à sua sorte. E ainda bem! Pense-se na uniformida­de lexical, gramatical e ortográfic­a que a Espanha impõe como ideal à América de fala espanhola”, escreve o linguista, concluindo que “o Português Brasileiro pôde desenvolve­r em invejável liberdade a sua norma, e vive bem nela”.

O texto termina exigindo, ainda que de forma jocosa, gratidão: “E venha daí um ‘obrigadinh­o’ a este Portugal que, oh felicidade, nunca teve um projecto linguístic­o, nem cultural, para o seu Império”.

Muito bem, mas não estou tão certo de que o deus-dará cultural seja algo que devemos agradecer. Seria necessário investigar primeiro até que ponto se funda nele a ridícula autoestima linguístic­a que leva o brasileiro médio a situar nosso português três degraus abaixo do português europeu, e este, pelo menos sete palmos abaixo do inglês.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil