Folha de S.Paulo

Jarbas Barbosa Anvisa não pode aceitar que o Congresso invada as suas atribuiçõe­s

Prestes a deixar o comando da agência, médico afirma que uma das maneiras de manter autonomia do órgão e reduzir o lobby é evitar o apadrinham­ento político

- Natália Cancian Marcelo Camargo - 4.jul.18/Agência Brasil

brasília Prestes a terminar o mandato como diretor-presidente da Anvisa, o qual ocupou por três anos, o médico sanitarist­a Jarbas Barbosa critica as tentativas do Congresso e Executivo de questionar normas da agência na área da saúde e afirma que uma das maneiras de evitar essa interferên­cia é que diretores não tenham apadrinham­ento político.

“Quando teve o debate sobre a fosfoetano­lamina, disse que havia risco sanitário. Por isso acho fundamenta­l que diretor de agência não tenha apadrinham­ento político. Um diretor-presidente, se tivesse, pensaria dez vezes antes de dizer que discordava e apontar problemas nas decisões do Congresso e do Executivo.”

Ele se refere às tentativas de liberação de produtos vetados pela agência —como a chamada pílula do câncer e inibidores de apetite. A primeira foi suspensa pelo STF (Supremo Tribunal Federal) e a segunda ainda aguarda análise. Agora, a agência também tenta reverter o avanço de projeto que reduz poder dela na regulação dos agrotóxico­s.

De saída para ocupar o cargo de diretor-assistente na Opas (Organizaçã­o Pan-americana de Saúde), braço da Organizaçã­o Mundial de Saúde em Washington, Barbosa diz que pretende discutir no novo cargo medidas estratégic­as de apoio aos países para garantir acesso a medicament­os de alto custo e tentar reverter a queda na vacinação, problema que atinge o Brasil.

Durante sua gestão, a Anvisa teve sua autoridade frequentem­ente questionad­a, com decisões do Congresso e do Executivo se sobrepondo às da agência, como no caso da chamada pílula do câncer e dos emagrecedo­res. Como vê esse movimento?

Tentei manter e defender a autonomia da agência. Se no passado o executivo influencia­va a agência indevidame­nte, não permiti que isso ocorresse.

Quando teve o debate sobre a fosfoetano­lamina, tomei posição e disse que havia risco sanitário. Por isso acho fundamenta­l que diretor de agência não tenha apadrinham­ento político. Um diretor-presidente, se o tivesse, pensaria dez vezes antes de dizer que discordava e de apontar problemas nas decisões do Congresso e do Executivo.

Ainda assim, a Anvisa tem perdido a batalha no caso dos emagrecedo­res. Também enfrenta investidas recentes em relaçãoaag­rotóxicos. A batalha continua. A Anvisa adotou posição pública nesses casos. No caso de anorexígen­os, ingressamo­s como “amicus curie” no Supremo Tribunal Federal. E temos convicção que o STF vai barrar, porque é inconstitu­cional. A legislação brasileira é clara ao dizer de quem é a responsabi­lidade de dar registro a medicament­os.

No caso da fosfoetano­lamina, foi um movimento populista [do Congresso e Executivo] de fazer meio que na pressa a liberação de algo que não tinha nenhuma comprovaçã­o, como não tem até hoje.

Todas as vezes que houver ameaça, seja do Congresso ou do Executivo, a agência tem que responder com autonomia e independên­cia, porque isso não vai deixar de ocorrer. Vemos que em outros países também há esse debate.

Considera que há uma tentativa de enfraqueci­mento da agência?

Diria que não há uma tentativa de enfraquece­r, mas de extrapolar seu papel. Qual a saída? É a agência ter tecnicamen­te muita consistênc­ia para mostrar que suas decisões protegem a saúde da população. E ter liderança política forte. Respeitamo­s o Congresso, que é fundamenta­l em uma democracia. Mas não podemos aceitar que o Congresso ou Executivo invada nossa atribuição.

O sr. diz que não pode haver apadrinham­ento político. Mas temos visto o contrário, em que crescem críticas pela interferên­cia política na nomeação de diretores. Penso que o papel das agencias regulatóri­as nunca foram bem compreendi­dos dentro do modelo do Estado brasileiro. Muitos senadores agem da maneira mais correta possível, questionam os candidatos nas sabatinas e cobram currículo adequado.

Mas infelizmen­te isso não é o modo de agir dominante. Muitas vezes se tem colocado pessoas em agências, falando

“No caso da fosfoetano­lamina [conhecida como pílula do câncer], foi um movimento populista [do Congresso e Executivo] de fazer na pressa a liberação de algo que não tinha nenhuma comprovaçã­o, como não tem até hoje

em amplo senso, sem experiênci­a de gestão. Isso torna a agência mais vulnerável.

Cobrança política tem que haver, o Congresso tem que cobrar eficiência e o Senado tem que cobrar que diretor indicado tenha qualificaç­ão necessária. Por isso defendo a aprovação do chamado PL das agências [projeto de lei que muda as regras para as agências], porque dará autonomia e reduzirá a possibilid­ade de indicação por apadrinham­ento político.

A Anvisa entrou em uma disputa nos últimos meses com o Ministério da Saúde, que pretendia importar medicament­os de alto custo e sem

aval da agência. Como ficou isso?

Como o Ministério da Saúde coordena o SUS, todas as solicitaçõ­es dele têm que ser tratadas com prioridade, mas isso não pode se dar à revelia da legislação.

Creio que todo gestor público tem que buscar reduzir custo, mas o que o ministério tentava fazer ao dispensar as apresentaç­ões de DDR [declaração de detentor de registro] das empresas era abrir as portas para poder ter no Brasil medicament­o falsificad­o, que não conseguíam­os assegurar a qualidade.

O registro não é uma coisa burocrátic­a, é um dossiê com milhares de páginas sobre qualidade, segurança e eficácia em que a empresa se responsabi­liza por qualquer problema com o medicament­o.

Se o ministério começar a solapar as bases desse sistema, nenhuma indústria teria interesse em registrar produtos no Brasil, e daqui a pouco seríamos como países da Ásia, com percentuai­s altíssimos de medicament­os falsificad­os. Por isso mantemos nossa posição e temos cumprido o que está na regulament­ação, exigindo que apresentem os documentos obrigatóri­os.

O sr. já chegou a dizer que a liberação do cultivo de Cannabis para fins medicinais era uma de suas prioridade­s. Mas não houve nem sequer uma proposta de iniciativa aprovada. O que deu errado?

Isso ficou pendente, mas está perto de se resolver. O diretorpre­sidente pode evocar para si qualquer processo, mas não fiz uso desse instrument­o em nenhum momento da gestão, pela harmonia entre diretores.

Quando percebi que o processo estava parado, fiz cobrança pública para que andasse. E agora está perto de concluir a iniciativa. É um tema complexo para ser regulament­ado. Mandamos técnicos da Anvisa fazer visitas técnicas ao Canadá e Reino Unido e tivemos intercâmbi­o de informaçõe­s com EUA e Israel. A discussão está avançada. Também tivemos alterações no regulament­ação e tivemos o primeiro medicament­o à base de Cannabis registrado. Também flexibiliz­amos a importação no canabidiol. Ficou faltando só essa regulament­ação. Acredito que o Renato Porto, diretor responsáve­l, tem condições de levá-la em no máximo 30 dias.

A Anvisa sofreu uma pressão para adiar esse debate sobre a Cannabis? Em mim não houve nenhuma. Não sei se para outro diretor houve. Até porque isso está na lei de 2006 [lei 11.343]. Não vamos debater plantação individual da pessoa. O que a lei diz é que para pesquisa científica e medicament­os, tem que regulament­ar.

A Anvisa também discute mudanças nos rótulos dos alimentos, mas a proposta tem sido alvo de lobby de todos os lados. Como garantir que a decisão favoreça ao consumidor? O modelo que

colocamos para uma tomada pública de subsídios [espécie de consulta pública] nitidament­e favorece o consumidor porque dá a possibilid­ade imediata de saber o conteúdo e fazer a escolha do alimento.

A indústria tem tentado adiar esse processo e já anunciou que vai apresentar nova proposta. É importante que todo mundo apresente suas propostas, mas a revisão que foi feita nos mostra que a proposta da indústria, que é o semáforo, é absolutame­nte inadequada. Vários estudos demonstram isso. O semáforo é facilmente confundido com as cores das embalagens dos alimentos. Também é de difícil interpreta­ção e pode levar a confusão. Se tem um alimento alto em sódio, baixo em açúcar e em gordura, ele teria um semáforo com um sinal vermelho e dois verdes. Que interpreta­ção se faz disso?

A maneira que colocamos é muito mais direta, com fundo preto para diferencia­r da embalagem e mostrar que é “alto em sódio”. Esse modelo faz a indústria buscar tecnologia­s para reduzir a quantidade de sódio, açúcar e gorduras. A indústria falou que pode demitir pessoas [com a mudança]. Não recebemos nenhum estudo consistent­e que mostre esse impacto na economia. E em países onde isso foi implementa­do não houve esse impacto.

O sr. deve agora assumir um cargo na Opas [braço da OMS nas Américas]. Deve levar demandas ou temas do Brasil para serem tratados internacio­nalmente?

Vou ficar responsáve­l por todas as áreas técnicas, inclusive a que trabalha com sistemas de saúde, acesso e regulação. A parte técnica de cooperação com os países vai estar sob minha responsabi­lidade.

Há temas que estimulamo­s, como medidas estratégic­as para garantir acesso a medicament­os de alto custo. Isso é uma preocupaçã­o do mundo inteiro. A Opas tem um papel importante de possibilit­ar o intercâmbi­o entre países e fixar medidas. A Opas também pode fazer compra em nome de vários países, o que permite aquisição maior.

Hoje temos um paradoxo, com medicament­os inovadores que aumentam as alternativ­as terapêutic­as disponívei­s, mas com custos difíceis de serem absorvidos pelos sistemas de saúde de países em desenvolvi­mento.

O Brasil enfrenta queda nos índices de imunização e avanço de doenças eliminadas, como o sarampo. Pretende abordar esse tema?

Vamos ter que tratar disso. Isso está exigindo um esforço grande de debate, esclarecim­ento e novas estratégia­s, como abrir os postos de saúde de noite e nos fins de semana. Hoje as mulheres trabalham e não tem condições de levar os filhos. Os sistemas de saúde das Américas precisam se adaptar à nova realidade e trabalhar com estratégia­s específica­s. Quem são os grupos que estão se vacinando e quem não está? Muitas vezes temos nos dois extremos pessoas de alto nível de educação e renda, ou profission­ais com modismos sem evidências científica­s. E na outra ponta pessoas pobres, com barreiras sociais. Esse é um desafio.

O êxito das vacinas reduziu tanto essas doenças que às vezes há percepção que elas sumiram e não vão voltar, mas elas estão voltando. A única que foi erradicada e não volta nunca mais é a varíola, mas as outras podem voltar.

A Opas pode e deve avaliar esse cenário. Ela liderou os esforços nas Américas para erradicar o sarampo. Todo ano há assembleia de ministros de saúde e esses pontos é um dos que vai ser tratado. Prestaremo­s assistênci­a aos países para que êxitos sejam alcançados.

 ??  ?? Jarbas Barbosa da Silva JúniorÉ diretor-presidente da Anvisa, cargo que assumiu em 2015 e deixa nesta semana. Antes, no Ministério da Saúde, foi secretário de Ciência e Tecnologia, de Vigilância em Saúde e titular da secretaria-executiva. É médico graduado pela Universida­de Federal de Pernambuco (1981)
Jarbas Barbosa da Silva JúniorÉ diretor-presidente da Anvisa, cargo que assumiu em 2015 e deixa nesta semana. Antes, no Ministério da Saúde, foi secretário de Ciência e Tecnologia, de Vigilância em Saúde e titular da secretaria-executiva. É médico graduado pela Universida­de Federal de Pernambuco (1981)

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