Folha de S.Paulo

Uma vitória republican­a na Copa

Estaríamos no toró abraçando jogadores suados ou sob um guarda-chuva?

- Mariza Dias Costa ccalligari@uol.com.br @ccalligari

Contardo Calligaris Psicanalis­ta, autor de ‘Hello, Brasil!’ e criador da série PSI (HBO)

A final entre França e Croácia foi bonita —um jogo de gente grande. Sem simulações excessivas, chiliques etc.

Mas o melhor foi a hora da premiação. Já durante o jogo, a TV mostrara Kolinda GrabarKita­rović, presidente da Croácia, e Emmanuel Macron, da França. Os dois torciam cada um pelo seu time, mas a relação era amistosa. No fim, desceram para o gramado de mãos dadas.

Grabar-Kitarović foi para a Rússia em voo comercial, pagando de seu bolso e descontand­o os dias de folga de seu salário (a viagem, segundo ela, não era trabalho). Ela ficou nas arquibanca­das, com a torcida croata; nas quartas de final, foi identifica­da, e a Fifa pediu que ela fosse para a tribuna de honra.

Nota: o Brasil pensa diferente, certamente por ser um país muito rico: entre governo federal e empresas públicas, foram à Rússia 43 pessoas “a trabalho” (técnicos e jogadores não estão incluídos nesse número).

Voltemos: Grabar-Kitarović, que já foi embaixador­a em Washington, ministra para a Integração Europeia e ministra das Relações Exteriores de seu país, despertou em mim a vontade de passar umas férias na Croácia, que tem uma costa linda e uma capital maravilhos­a, Zagreb.

O nosso ministro do Turismo esteve na Rússia; não sei se foi do bolso dele, mas sei que ele foi ouvido: declarou que os torcedores brasileiro­s zoando mulheres russas eram só moleques. Aposto que não despertou em um só russo a vontade de vir ao Brasil.

Emmanuel Macron foi para a Copa com mais pompa do que Grabar-Kitarović. Mas gostei de sua aparição: 1) porque o “vive la France” dele é sempre acompanhad­o por um “vive la République” —como se o país merecesse um salve só pelos valores republican­os, que ele representa mundo afora; 2) porque ficou embaixo de um toró, ao lado da presidente croata, abraçando cada jogador da Croácia e da França como se a chuva fosse irrelevant­e.

Falando em chuva, eis um teste para saber em que regime político você vive. Se a chuva vem, e o primeiro guarda-chuva que aparecer for para proteger o chefe de Estado (como aconteceu com Putin), pode-se concluir que o tal chefe de Estado está perto de ser um ditador, pelos privilégio­s que ele se outorga ou (pior) pelo medo que ele incute em seus subordinad­os.

Como se comportari­am nossos presidente­s? Na chuva abraçando os jogadores suados ou no guarda-chuva de Putin? Ou em qual solução intermediá­ria entre essas duas possibilid­ades?

Mais coisas sobre a Copa. # Disse que a final foi um jogo de adultos. De fato, houve pouca choradeira ou imprecação contra o árbitro. Em geral, o primeiro passo para “melhorar” consiste em parar de acusar os outros. Isso vale no futebol assim como na vida do país, em que a tradição nacional é a de culpar a todos salvo a gente.

# Na mesma direção: mais de uma vez, nos jogos, pareceu-me que, ao entrar na área adversária, os passes de nosso ataque serviam sobretudo para os jogadores evitarem a responsabi­lidade de finalizar. O ataque parecia fracassar porque nenhum atacante queria correr o risco de errar. O jogo era: deixar qualquer culpa eventual para os outros (inclusive os outros do meu time).

# Depois do 7 a 1 de 2014, escrevi uma coluna com o título “O Brasil ganhou a Copa”. A vitória do Brasil estava, ao meu ver, no fato de ter perdido sem que isso fosse uma tragédia. Essa ideia continua valendo. Desta vez, assisti ao jogo com a Bélgica com toda a equipe de “Psi”, o seriado da HBO do qual sou diretor-geral: paramos de trabalhar e fomos para um bar. Claro, torcemos. Mas sabe o quê? Perdemos, e eles ganharam. Pena, valeu.

# Durante muito tempo, a gente achou que o talento no futebol era uma matéria-prima exclusivam­ente brasileira. As matérias-primas nunca são um bom negócio: o que vale é o que a gente faz com elas. Olhe só, somos grandes produtores de cacau, empatamos com a Suíça e perdemos da Bélgica, países que não têm cacau, mas são potências do chocolate.

# Ouvi dizer que “perdemos a Copa”. É bizarro: é possível perder um jogo ou outro. Quanto à Copa, é apenas possível não ganhá-la.

Ou, então, será que 31 times perderam a Copa? Eu diria que eles não a ganharam. Só da Croácia podemos dizer que perdeu a Copa, porque perdeu a final.

Conclusão: o bem-estar mental, em geral, começa com a constataçã­o de que somos apenas uns entre outros, na vida, em campo e na Copa.

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil