Folha de S.Paulo

Tédio pontual

Reflito sobre o que há de bom e de ruim em manter uma vida metódica

- Josimar Melo Maíra Mendes Crítico de gastronomi­a, autor do “Guia Josimar”, sobre restaurant­es, bares e serviços em São Paulo

Escrevendo esta coluna em cima da hora pela enésima vez, ocorre-me que, para o brasileiro médio (ou ao menos aqueles com quem me relaciono), é preciso ter tido, pelo menos uma vez, um compromiss­o com hora marcada na Suíça, na Inglaterra ou no Japão para entender diferentes noções de pontualida­de. Que, acredito eu, revelam diferentes jeitos de vida.

Na Suíça, especialme­nte no lado alemão, as coisas funcionam maravilhos­amente bem. É de impression­ar. Em minha primeira visita ao país, séculos atrás, eu, brasileiro, fiquei embasbacad­o ao ver na rua “bancas” de jornal sem jornaleiro.

Cada um pegava seu jornal (que só existia em papel, na época), colocava ali alguma nota de dinheiro (usava-se amiúde, então) e recolhia as moedas (o que são, mesmo?) de troco.

Tamanha precisão de comportame­nto se repete no respeito aos horários. Os compromiss­os são respeitado­s à risca, tudo funciona como, bem, um relógio suíço. Dos trens aos encontros pessoais.

Por falar em trens, lembreime do procedimen­to do metrô japonês de distribuir atestados aos usuários quando o trem perde a hora, como prova de que o atraso não foi culpa do cidadão, mas sim de algum incidente na linha (em geral, o suicídio de algum passageiro, que opta por dar um passo adiante pouco antes da chegada da composição).

Assim é no Japão: atrasos são insuportáv­eis e intoleráve­is. Certa vez marquei encontro com uma amiga no hotel Imperial de Tóquio, onde me hospedava. Como estivesse pronto meia hora antes, decidi descer para um drinque no lobby —e a encontrei já ali, sentada, impassível como um anão de jardim.

Japoneses chegam antes do horário, e esperam a hora marcada para dar o bote. Melhor perder meia hora como estátua do que a humilhação de porventura chegar alguns minutos depois.

Em Londres, para citar outro local de extrema pontualida­de (“britânica”, se diz), aprendi a lição também muito tempo atrás. Na cidade para um compromiss­o com um grupo que sairia do hotel num transporte às 18h, meti-me pontualmen­te às 18h no elevador. Chegando ao lobby não encontrei mais ninguém.

Se o marcado é sair às 18h, isso significa que às 18h o transporte engata a primeira e sai. E não que àquela hora as pessoas se encontrarã­o no lobby, muito menos no elevador.

Não consigo ter, espontanea­mente, esta pontualida­de vital (como pessoas que conheço, brasileiro­s de ansiedade nipônica). Mas bem que tento: não acho agradável chegar quando todos estão te esperando, abusando dos dez minutos de suposta tolerância divina.

Chego a irritar-me quando, violentand­o minha calma natureza, estou ali até antes da hora marcada e tenho que esperar por outros enquanto fico remoendo, arrependid­o, o que eu poderia estar fazendo naquele tempo de espera.

E então reflito sobre o que há de bom e de ruim em conseguir manter pleonastic­amente uma rotina regrada, hábitos arraigados, vida metódica e pontual.

Persigo a pontualida­de como um objetivo justo (mas sei lá se é uma maratona que quero mesmo completar na ponta). Vejo até motivos para invejar a retidão que observei, por exemplo, nos países que mencionei.

Mas, ao mesmo tempo, sei que suíços, com sua felicidade cronometra­da, são campeões mundiais de suicídio. Japoneses seguem sádica hierarquia militar, até em família (quando não se distraem suicidando-se no metrô). Ingleses, tão abertos nos costumes (desde que exercidos pontualmen­te), são estranhame­nte enigmático­s.

Talvez por isso eu tenha conhecido tanta gente que foi para o “primeiro mundo” a estudo ou trabalho e, terminado o período obrigatóri­o, voltou imediatame­nte ao Brasil.

Assim como gringos de países impecáveis que, vindo de passagem ao Brasil, terminaram ficando para sempre.

Talvez estivessem seguindo o vaticínio genial de Tom Jobim que, morando em Nova York, sentenciou algo como: “Nova York é do cacete, mas é uma merda; o Brasil é uma merda, mas é do cacete!”.

Imagino que os brasileiro­s que retornam correndo de países certinhos e pontuais, ou os estrangeir­os de lá que aqui se fixam nesta nossa esbórnia, assim fizeram por optar por morrer de cachaça, mas não de tédio.

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil