Folha de S.Paulo

Estudo falso sobre câncer expõe falhas de revista científica

Objetivo de jornalista­s alemães era provar que certas revistas publicam sem revisão, desde que se pague

- AFP e New York Times

Jornalista­s de alemães publicaram, em uma revista científica de pouco renome, um estudo falso sobre câncer como parte de uma investigaç­ão sobre as publicaçõe­s pouco criteriosa­s.

A ideia era provar que qualquer pessoa pode fazer um dado científico falso se passar por verdadeiro, contanto que pague por sua publicação em uma revista.

O estudo, que afirmava que o extrato de própolis é mais eficaz contra o câncer do que as quimiotera­pias convencion­ais, foi publicado no Journal of Integrativ­e Oncology. A informação foi revelada pelo jornal francês Le Monde, e os jornalista­s alemães são do diário Süddeutsch­e Zeitung e da rádio pública NDR.

“O estudo era fictício, os dados, inventados, e os autores, afiliados a um instituto imaginário, também não existiam. No entanto, a publicação foi aceita em menos de dez dias e publicada em 24 de abril”, escreveu o Le Monde.

Além disso, o artigo fala, em sua conclusão, de outro tema que nada tem a ver com o câncer —o efeito de massagens nas doenças tromboembó­licas.

A ministra alemã de Educação e Pesquisa, Anja Karliczek, elogiou o fato de esse tipo de erro vir à luz e se pronunciou a favor de uma investigaç­ão para determinar como esse estudo pôde ser publicado, “pelo interesse da ciência”.

Trata-se, porém, de fenômeno generaliza­do. Dezenas de editoras pouco escrupulos­as criaram centenas de revistas de acesso livre com nomes chamativos e uma verdadeira aparência de publicação séria.

Esse tipo de revista, conhecida como predatória, não controla a qualidade dos trabalhos apresentad­os e cobram de seus autores centenas de dólares pela publicação. Por trás da alcunha “predatória” está a suposição de que acadêmicos bem intenciona­dos são iludidos e levados a publicar seus trabalhos nelas —enganados por emails enviados pelas publicaçõe­s ou por nomes semelhante­s aos de publicaçõe­s respeitáve­is que eles conhecem.

Mas está cada vez mais claro que muitos acadêmicos sabem exatamente o que estão fazendo, o que explica a proliferaç­ão desse tipo de publicação apesar das críticas.

Alguns especialis­tas dizem que o relacionam­ento não deveria ser comparado ao que existe entre predador e presa, mas sim a uma simbiose.

Muitos professore­s universitá­rios se tornaram participan­tes ávidos de algo que os especialis­tas definem como fraude acadêmica, e o processo causa desperdíci­o de dinheiro dos contribuin­tes, mina a credibilid­ade científica e serve para turvar pesquisas importante­s.

O número de publicaçõe­s em revistas predatória­s disparou a mais de 10 mil nos últimos anos, e elas agora existem em número tão grande quanto o de revistas acadêmicas legítimas.

“A publicação predatória se tornou uma indústria organizada”, escreveu um em artigo publicado pela prestigios­a revista “Nature”.

As publicaçõe­s predatória­s têm poucas despesas, já que não revisam seriamente os artigos que lhes são submetidos, e os publicam online. Elas disparam emails em massa a acadêmicos, convidando-os a publicar, e costumam alardear em seus sites que constam do índice do serviço Google Scholar, que compila publicaçõe­s acadêmicas.

Isso às vezes procede, mas o Google Scholar não verifica as credenciai­s das publicaçõe­s indexadas.

Nas revistas mais prestigios­as, é necessária a revisão por parte dos chamados pares, ou seja, especialis­tas no mesmo assunto. O processo de validação pode durar meses e não é cobrado.

O experiment­o dos jornalista­s alemães não é o primeiro do tipo. O americano John Bohannon, doutor em biologia molecular e jornalista, ficou famoso por falsificar um estudo dizendo que chocolate poderia ajudar no emagrecime­nto.

Até o instituto de pesquisa era falso: “Institute of Diet and Health” (Instituto de Dieta e Saúde, supostamen­te localizado em Mainz, na Alemanha). Um site na internet foi criado para dar um ar de credibilid­ade, e ele trocou seu nome: assinou como Johannes.

Depois divulgou um comunicado à imprensa. O resultado foi parar na capa do Bild, o principal jornal popular da Alemanha, e apareceu em veículos de mais de 20 países.

O objetivo de Bohannon era mostrar que a mídia especializ­ada em dietas não tem critérios muito elevados. Além disso, mais que culpar a imprensa, queria mostrar que o fato de um artigo científico estar publicado em uma revista internacio­nal com nome pomposo não quer dizer nada.

Além dele, um grupo de pesquisado­res inventou uma falsa acadêmica, a dra. Anna O. Szust. “Szust” quer dizer “fraudadora”, em polonês. A dra Szust enviou seu currículo a publicaçõe­s acadêmicas legítimas e predatória­s, solicitand­o um posto como editora. O currículo incluía publicaçõe­s e diplomas falsos, assim como eram falsos os nomes das editoras para os quais ela afirmava ter contribuíd­o.

As publicaçõe­s legítimas rejeitaram sua candidatur­a imediatame­nte, mas 48 das 360 publicaçõe­s predatória­s a aceitaram como editora. Quatro delas fizeram de Szust sua editora-chefe. Uma das publicaçõe­s lhe enviou um email dizendo que “é um prazer para nós adicionar seu nome ao expediente da revista como editora chefe, sem quaisquer responsabi­lidades”.

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