Crianças separadas na fronteira dos EUA apresentam traumas
Segundo responsáveis, menores estão irritadiços, apáticos e têm dificuldade de seguir rotinas
Crianças imigrantes que passaram por abrigos depois de serem separadas dos pais na fronteira entre EUA e México apresentaram alterações de comportamento.
Elas incluem recusa a seguir regras e apatia. Segundo a Academia Americana de Pediatria, a separação pode causar “traumas irreparáveis” nas crianças.
Depois de quase dois meses em um abrigo nos EUA, o brasileiro Davi (nome fictício), 5, inventou uma brincadeira: chama um amigo, empurra-o contra a parede e coloca suas mãos para cima, como um policial.
“Ele pediu uma arma de brinquedo para a mãe”, conta a assistente jurídica Luana Mazon, do escritório de advocacia Jeff Goldman, que assessora a família. Desde que foi reunido à mãe, na semana passada, ele quase não conversa, não come e quis voltar a mamar, no peito. “Está completamente traumatizado.”
O relato é um entre vários que advogados e famílias têm ouvido desde que dezenas de crianças imigrantes reencontraram os pais, após serem separadas por agentes ao cruzarem a fronteira ilegalmente.
Mudanças de comportamento, como a recusa a seguir regras, a apatia ou a completa ausência de demonstrações de carinho, também foram relatadas.
A Academia Americana de Pediatria, que se opôs à tolerância zero, já afirmou que a prática pode causar traumas irreparáveis às crianças.
“A verdade é que o problema não acaba aí [na reunificação das famílias]: está só começando”, comenta Liliane Costa, diretora-executiva do Brace (Brazilian-American Center), que atende imigrantes nos arredores de Boston.
A região reúne uma das maiores comunidades brasileiras nos EUA. É para lá que foram algumas das famílias reunidas nas últimas semanas.
Uma delas é a da mineira Sirley Silveira, que voltou a ver o filho de dez anos no início de julho, depois de 42 dias. “A mãe disse que ele está muito estranho: está agressivo, não tem paciência, não quer obedecer, fica perguntando a toda hora o que vai fazer”, conta Mazon, que também assessora a família.
Ao mesmo tempo, o menino não quer distância da mãe. Fica com medo de vê-la sair de vista. E não gosta de lembrar o que aconteceu no abrigo onde ficou, em Chicago.
Apesar de as condições materiais do lugar serem boas, segundo o relato de equipes que visitaram as crianças brasileiras, a rotina era espartana. Havia hora para levantar, para dormir e tarefas como limpar o quarto e o banheiro.
Para os brasileiros, a socialização era mais difícil, já que a maioria dos residentes falava espanhol. Irmãos foram separados em quartos diferentes. O contato com os pais se limitava a dez minutos por semana, por telefone. E, em alguns abrigos, contatos físicos com outras crianças, incluindo abraços, eram proibidos. Mesmo diante de choro.
“A gente sabe o quanto essa experiência pode ser traumática”, diz o psicólogo Daniel de Lima, que trabalha com a comunidade imigrante nos EUA.
“Essa é uma fase em que a criança está completamente dependente do outro e precisa de cuidado, até para desenvolver o próprio sentido de confiança”, comenta. “Depois da separação, na cabeça dela, correm dois sentimentos: de um lado, ela está desesperada para se reunir aos pais, mas, de outro, tem a sensação de ter sido traída.”
A volta à amamentação, como ocorreu com o menino de cinco anos, indica uma regressão psicológica, segundo Lima, para um momento em que a criança se sentia totalmente protegida.
Os sintomas podem ser mais facilmente notados em crianças menores, mas, no caso de adolescentes, a separação é igualmente prejudicial, já que pode ser o gatilho para uma revolta contra os pais.
Segundo Lima, nos adultos, o sentimento a ser trabalhado é a culpa, que, no futuro, pode gerar um comportamento de superproteção.
“Parece até que o objetivo do governo americano é exatamente esse: tornar esses pais culpados por terem levado seus filhos à fronteira. Mas isso é uma completa falta de empatia pelo sofrimento e pela história dessas pessoas”, afirma o psicólogo.
O Consulado do Brasil em Boston está organizando um grupo de apoio para atender a mães e filhos, gratuitamente.
Equipes deste e de outros consulados seguem visitando as crianças nos abrigos espalhados pelos EUA. Cerca de 40 menores brasileiros ainda estão sob a guarda do governo americano, longe dos pais.
Alguns relatos de quem já deixou as instituições assustaram advogados, que estudam entrar com uma ação coletiva reclamando de negligência e maus-tratos.
O filho de Sirley Silveira, por exemplo, quebrou o braço jogando futebol e disse não ter sido atendido por um médico, mas por um funcionário da instituição, e não fez nenhum tipo de exame ou raio X. Hoje, o braço dói, e ele ainda usa um curativo improvisado. Ele também disse ter visto um menino de cinco anos receber medicação intravenosa em meio a crises.
Depois dos primeiros relatos virem à tona, o governo do estado de Illinois abriu uma investigação nesta semana para verificar o estado dos abrigos na região de Chicago.
A Heartland Alliance, que mantém as instituições, informou que as alegações são “perturbadoras, porque não refletem os valores e a qualidade do serviço” da organização e disse que iniciou uma apuração para identificar e punir eventuais responsáveis por maus-tratos. separação de famílias.
Nomeado para a corte federal pelo ex-presidente George W.Bush, Sabraw ordenou que o governo reunisse pais e filhos separados na fronteira em um prazo de 30 dias, a partir de 26 de junho. A decisão envolveu processo impetrado pela ACLU.
Na ocasião, ele determinou que todos menores de cinco anos deveriam ser devolvidos aos pais até 10 de julho— o governo americano só conseguiu reunir 57 crianças de 103.
Também estabeleceu 26 de julho como prazo final para que todos os menores estivessem reunidos a seus familiares.
A administração de Donald Trump está se esforçando para cumprir a exigência, mas ainda tem 2.551 menores entre 5 e 17 anos sob sua custódia.
Na sexta (13), o juiz mandou o governo pagar os custos da reunião das famílias. A decisão foi tomada, de novo, com base em uma ação da ACLU, que afirmou que os agentes de imigração estariam dizendo aos pais que precisavam pagar os custos da reunião.
Na medida mais recente, da última segunda (16), Sabraw ordenou a suspensão temporária das deportações das famílias reunidas, mais uma vez atendendo a pedido da ACLU.
A organização conseguiu que as deportações ocorressem pelo menos uma semana após a reunificação familiar, para dar tempo aos pais de receberem orientação sobre se davam continuidade ou não a pedidos de asilo nos EUA.
Muitos tiveram que escolher entre ser deportados com os filhos ou deixar as crianças nos EUA, com a esperança de que o asilo fosse concedido.
As posições mais flexíveis em relação aos imigrantes podem estar enraizadas na origem do juiz, nascido em San Rafael, Califórnia.
A mãe dele é imigrante japonesa —Makoto é o nome do meio de Sabraw. Ela e o pai do juiz, americano, conheceram-se quando ele servia na base militar dos EUA no Japão durante a Guerra da Coreia.
Em entrevista de 2003 ao jornal North County Times, Sabraw afirmou que seus pais tiveram dificuldade em encontrar moradia nos Estados Unidos por causa da discriminação racial nos anos 1960.
“À luz daquela experiência, eu fui criado com grande consciência sobre preconceito. Sem dúvida, houve ocasiões, quando eu crescia, em que me senti diferente, e coisas dolorosas aconteceram por causa da minha raça”, afirmou.
Na mesma entrevista, ele disse que essas experiências contribuíram para seu amadurecimento e defendeu a importância de haver diversidade entre os juízes nos EUA.
O juiz foi o quarto da família a seguir a carreira, juntando-se a uma tia, a um tio e a um primo. Ele se formou em direito na Universidade do Pacífico.
Sabraw atuou como advogado entre 1985 e 1995, antes de se tornar juiz na corte municipal de North County. Em 1998, foi para a corte superior da Califórnia, antes de ser indicado, em 2003, para ocupar vaga na corte federal pelo ex-presidente Bush.
Ele é casado com Summer Stephan, atual procuradora do condado de San Diego. Eles têm um filho mais velho e gêmeas —todos na casa dos 20 anos.
Sabraw fez parte do comitê de aconselhamento sobre patentes no Southern District da Califórnia, responsável por implementar regras locais sobre o tema que serviram de base para casos envolvendo patentes.
Também ficou famoso por um processo envolvendo 34 réus e cinco ações separadas contra membros de uma gangue mexicana. Foram três julgamentos separados, um deles incluindo sete réus sendo julgados simultaneamente por um júri.
Mas a trajetória do juiz não está livre de controvérsia. Em 2016, ele foi criticado por se recusar, mesmo que temporariamente, a bloquear uma lei da Califórnia que exigia a vacinação obrigatória para todas as crianças em escolas, independentemente de suas crenças religiosas e pessoais. Só aquelas com razões médicas para não ser vacinadas seriam liberadas da campanha.
“Está claro que a Constituição não exige o provimento de uma exceção religiosa às exigências de vacinação, muito menos uma exceção [baseada] em crenças pessoais”, escreveu o magistrado em sua decisão.
“A mãe disse que ele está muito estranho: está agressivo, não tem paciência, não quer obedecer, fica perguntando a toda hora o que vai fazer
Luana Mazon assistente jurídica, sobre filho de brasileira que passou 42 dias separado dela, depois de os dois serem pegos tentando entrar ilegalmente nos EUA
Depois da separação, na cabeça da criança, correm dois sentimentos: de um lado, ela está desesperada para se reunir aos pais, mas, de outro, tem a sensação de ter sido traída
Daniel de Lima psicólogo brasileiro que trabalha com a comunidade de imigrantes nos EUA