Folha de S.Paulo

Polêmica, ‘Tchernobil flutuante’ está sendo preparada no Ártico da Rússia

Primeira usina nuclear em barcaça do mundo, alvo de críticas, recebe combustíve­l em Murmansk

- Igor Gielow

“Tchernobil flutuante” ou solução energética para uma das regiões mais afetadas pelo aqueciment­o global? Essas são as perguntas que cercam a primeira usina nuclear flutuante do mundo, que está sendo preparada para operação em Murmansk, no Ártico russo.

A barcaça Acadêmico Lomonosov chegou ao píer da Atomflot, a subsidiári­a naval da Rosatom (estatal russa de energia atômica), em 19 de maio.

O local já abriga uma frota de quatro quebra-gelos de propulsão nuclear, únicos no mundo, e uma unidade de processame­nto de lixo atômico.

Lá, os dois reatores de 35 megawatts cada um da Lomonosov estão sendo abastecido­s com combustíve­l nuclear.

Após testes, no começo de 2019 ela deverá ser rebocada por 5.400 km de mar até Pevek, no extremo leste do Ártico, e poderá abastecer até 100 mil pessoas na região de Tchukotka, um dos lugares mais ermos da Terra.

Para ambientali­stas do Greenpeace, é um risco sem igual de acidentes, já que a barcaça tem seu fundo achatado e seria assim mais vulnerável ao mar bravio da região.

Ela também precisa de rebocadore­s para navegar, um fator adicional de risco.

“É uma Tchernobil flutuante”, diz comunicado do grupo, em referência à cidade hoje na Ucrânia famosa pela explosão de um reator nuclear soviético em 1986.

“As acusações não fazem nenhum sentido. A Agência Internacio­nal de Energia Atômica aprovou o projeto, e ele trará energia limpa para regiões distantes da Rússia”, respondeu, em nota, a Rosatom.

A empresa alega que a usina substituir­á uma antiga unidade com reatores derivados do modelo RBMK —justamente o que explodiu em Tchernobil, embora tenham sido atualizado­s após o acidente.

Além disso, uma antiga e poluidora termelétri­ca a carvão dos tempos soviéticos também será desativada. Hoje, 50 mil pessoas são atendidas na região pelas usinas.

A Rosatom defende, claro, que o uso da energia nuclear trará menos impacto ambiental ao Ártico, região que no ano passado teve a menor cobertura de gelo polar de sua história.

Já os ambientali­stas apontam para o desastre de Fukushima, após um tsunami em 2011 no Japão, como prova de que não há segurança possível no uso de usinas atômicas.

Os russos, apesar do discurso, cederam à pressão da Noruega, que não queria que a barcaça deixasse o seu estaleiro, em São Petersburg­o, e passasse por sua costa a caminho de Murmansk carregada com combustíve­l nuclear.

Assim, os primeiros 5.100 km de mar foram feitos sem urânio enriquecid­o a bordo. O Greenpeace tentou abordar a embarcação, mas foi impedido pela Guarda Costeira da Suécia, 16 dias antes da chegada a Murmansk.

O píer da Atomflot fica numa região fechada, cerca de 11 km ao norte de Murmansk, cidade de 299 mil habitantes. O bairro residencia­l mais próximo é Rosta, a 2 km do local.

“Estamos acostumado­s com isso. Meu filho serviu na Marinha, trabalhou num submarino nuclear. Sempre houve essas coisas por aqui”, disse Marina Ruslanova, 62, moradora de um antigo bloco soviético em Rosta.

Além dos quebra-gelos nucleares, o primeiro feito em 1957 e que hoje é um museu flutuante, há pelo menos 23 submarinos de propulsão atômica na Frota Setentrion­al, baseada no conjunto de fiordes conhecido como baía de Kola.

A sede da frota fica a 25 km de Murmansk, em Severomors­k, outra região de acesso controlado.

A segurança é necessária pelo risco de ataques terrorista­s. Uma unidade do SpetchnazF­SB, força de elite russa, está baseada com 40 homens em Murmansk para emergência­s.

O único grupo ambientali­sta da cidade, o Natureza e Juventude, não respondeu ao contato da reportagem.

Em maio, ele publicou em sua conta no Twitter um protesto contra a presença da Lomonosov, questionan­do se Murmansk continuará sendo um lugar para “experiment­os perigosos”.

A vida útil do combustíve­l da Lomonosov, cujo nome homenageia um cientista russo do século 18, é de 40 anos, renováveis por mais 40. Depois disso, o urânio gasto precisa ir para aterros de lixo atômico. Há cinco desses na região de Murmansk.

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Alexander Nemenov - 19.mai.18/AFP A usina nuclear Acadêmico Lomonosov é rebocada na entrada do porto de Murmansk, na Rússia, onde receberá carga atômica
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