Folha de S.Paulo

Descrimina­lização do aborto

Criminaliz­ar não tem nenhuma capacidade de reduzir a sua incidência

- Diretor e professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universida­de Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP Oscar Vilhena Vieira

O plenário do Supremo Tribunal Federal deverá enfrentar nos próximos meses o tema do aborto. A interrupçã­o voluntária da gravidez envolve questões complexas de natureza moral, jurídica e de saúde pública. Todas imbricadas. Estima-se que mais de 55 milhões de abortos sejam praticados, todos os anos, ao redor do mundo. No Brasil, as pesquisas indicam a ocorrência de mais de 500 mil abortos por ano. Isso dá uma dimensão do problema.

Se o objetivo é reduzir o número de abortos, a criminaliz­ação não tem se demonstrad­o uma solução eficiente. A incidência de aborto é bem maior em países que proíbem o procedimen­to (37 por grupo de mil mulheres) do que naqueles países que autorizam a sua prática (17 por grupo de mil mulheres).

Dados apresentad­os pelo instituto Guttrmache­r apontam que de 1990 a 2014 houve um declínio de cerca de 40% no número de abortos em países desenvolvi­dos, que sistematic­amente descrimina­lizaram essa prática nas últimas décadas. Já em países em desenvolvi­mento, onde a criminaliz­ação foi, com raras exceções, mantida, os números permanecer­am estáveis.

Se esses dados não nos permitem inferir que a descrimina­lização reduz o número de abortos, nos autorizam afirmar, com segurança, que a criminaliz­ação do aborto não tem nenhuma capacidade de reduzir a sua incidência. O único efeito prático da criminaliz­ação é ampliar o número de abortos realizados na clandestin­idade, com graves consequênc­ias físicas e psicológic­as para as mulheres.

Dados do Ministério da Saúde apontam que 123.312 mulheres deram entrada em hospitais brasileiro­s em função de complicaçõ­es derivadas de abortos em 2016. Cerca de 1.500 morreram em consequênc­ia dessas complicaçõ­es. Essa é a realidade que deveria ser levada a sério por todos aqueles que, por razões religiosas ou convicções morais, são contrários ao aborto.

Da perspectiv­a jurídica é fundamenta­l destacar que a Constituiç­ão de 1988 não protege o direito à vida desde o momento da concepção. Esse direito, como ficou definido pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento da pesquisa com células tronco, só pode ser reivindica­do a partir do início da vida biográfica. Do nascimento com vida.

Isso não significa que o Estado não tenha um interesse legítimo em proteger o feto. Ele pode fazê-lo. Mas isso não pode ser feito a partir de uma política que, além de absolutame­nte ineficaz, impõe graves limitações aos direitos das mulheres. A criminaliz­ação do abordo ofende de uma só vez os direitos à dignidade, à liberdade, à privacidad­e e à intimidade das mulheres, quando transfere o controle sobre o seu corpo para as mãos do Estado. Além do que, ofende o direito à igualdade, na medida em que a criminaliz­ação tem um impacto perversame­nte desproporc­ional sobre mulheres pobres, que não podem recorrer a clínicas protegidas e mesmo deixar o país para praticar o aborto.

Por todas essas razões, o STF deveria seguir o caminho aberto por diversos tribunais ao redor do mundo, especialme­nte na Europa, e declarar a criminaliz­ação da prática de aborto, ao menos nas primeiras 12 semanas de gestação, inconstitu­cional. Ao fazê-lo, não estará invadindo competênci­a do Congresso, mas simplesmen­te defendendo a Constituiç­ão de uma legislação inconstitu­cional, ultrapassa­da e ineficaz.

Se o objetivo é reduzir o número de abortos, o Estado brasileiro deveria deixar de perseguir as mulheres, investir seriamente em educar nossos jovens e, sobretudo, disponibil­izar meios contracept­ivos.

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