Folha de S.Paulo

Personagen­s de John Banville são monstros admiráveis

Em ‘O Livro das Evidências’, que ganha nova edição, um cientista reproduz as circunstân­cias que o levaram ao crime

- Álvaro Costa e Silva Paola Poma É professora de literatura portuguesa na Universida­de de São Paulo

O Livro das Evidências

Autor: John Banville. Tradução:

Fabio Bonillo. Ed. Globo Livros, selo Biblioteca Azul. R$ 44,90 (240 págs.) Em “Um Assassino Entre Nós”, Ruth Rendell (1930-2015) escreveu uma das mais famosas aberturas da literatura criminal. Ela simplesmen­te entrega quem é o assassino na primeira linha: “Eunice Parchman matou a família Coverdale porque não sabia ler nem escrever”. E joga para o leitor uma isca perfeita: como um absurdo desse pôde acontecer?

Não à toa, Rendell adorava “O Livro das Evidências”, de John Banville, que acaba de ganhar nova tradução entre nós (a primeira, de 2002, saiu pela Record com o título de “O Livro das Provas”).

Logo nos parágrafos iniciais o narrador, que está preso, protesta contra “o cheiro de sêmen por toda a parte”. O que interessa, de novo, é a pergunta: como ele chegou ali?

O livro se arma como uma confissão não confiável de toda: “Jura dizer a verdade, toda a verdade e nada além da verdade? Não me faça rir”.

O cientista Freddie Montgomery reproduz as circunstân­cias que o levaram a cometer dois crimes: roubar uma pintura holandesa do século 17 e assassinar uma mulher que o pegou em flagrante.

Aos poucos o leitor percebe que o relato em primeira pessoa pode ser pura especulaçã­o, pela quantidade de pistas falsas e pelo caráter dúbio de quem narra.

Montgomery se apresenta como um bon-vivant que, depois de receber uma herança, vive em ilhas do Mediterrân­eo bronzeando-se e bebendo gim ao lado da mulher e do filho. Mas no fundo é um monstro.

Um monstro admirável como outros que compõem a galeria dos personagen­s de John Banville: o espião Victor Maskell de “O Intocável”, o acadêmico Axel Vander de “Sudário”, o pintor Oliver Orme de “O Violão Azul”, seres cheios de charme, mas inadaptado­s ao mundo.

A certa altura Montgomery reflete: “Eu nunca de fato me acostumei a estar neste planeta. Às vezes penso que nossa presença aqui se deve a um deslize cósmico, que tínhamos sido designados para outro planeta, com outros arranjos, e outras leis, e outros e severos céus”.

A etiqueta de pós-moderno não veste bem em Banville, cujo modelo de aspiração é Henry James. Mas ele se permite algumas piscadelas metaficcio­nais: citações a “O Homem Sem Qualidades”, de Musil, e “O Estrangeir­o”, de Camus.

O autor põe o estilo em primeiro lugar, e a história vem a reboque. Seu toque de Midas é a frase rítmica, plástica, detalhista. Um romancista fascinado pela arte figurativa, que aparece com insistênci­a em suas obras. (Banville declarou que, se tivesse talento, gostaria de se arriscar numa carreira de pintor.)

O quadro pelo qual o narrador perde a cabeça —“Retrato de uma Mulher com Luvas”, atribuído a Rembrandt, Frans Hals ou Vermeer— não causa uma impressão pictórica tão forte quanto o momento de confusão em que se dá o roubo:

“Impression­ou-me que a perspectiv­a dessa cena estava errada de alguma forma. As coisas não pareciam retroceder tal como deveriam, mas sim serem dispostas perante mim —a mobília, a janela aberta, o gramado e o rio e as montanhas longínquas— como se não estivessem sendo observadas mas estivessem elas mesmas observando, mirando um ponto de fuga aqui, dentro do cômodo”.

O clímax do romance é o homicídio. Banville consegue passar para o papel a lição de Alfred Hitchcock no filme “Cortina Rasgada” (1966): uma sequência de assassinat­o longa, o contrário do clichê que a mostra rápida e indolor. Uma prova de como é difícil, penoso e demorado matar uma pessoa. Ainda mais quando se usa um martelo dentro de um carro.

Publicado em 1989, “O Livro das Evidências”, ao ser indicado para o Man Booker Prize, tornou o autor conhecido em sua Irlanda natal. Andan- do pela rua, ele quase foi atropelado por um ciclista que, ao se desculpar, disse: “Seu livro é foda!”. Sua leitura é a melhor maneira de adentrar no terrível universo de John Banville.

Um Jogo Bastante Perigoso

Autora: Adília Lopes. Ed. Moinhos. R$ 35 (56 págs.) Livro de estreia da poetisa portuguesa Adília Lopes, “Um jogo Bastante Perigoso” acaba de ser lançado no Brasil pela editora Moinhos, 33 anos após a sua primeira publica- ção em 1985.

Este intervalo talvez instigue o leitor a fazer a pergunta: a que tipo de jogo a autora se refere? E acrescenta­r: qual o seu perigo?

Híbrido de memória pessoal e releituras, a autora avisa que o caminho escolhido é o da contracorr­ente —“Os poemas que escrevo/são moinhos/que andam ao contrário/as águas que moem/os moinhos/que andam ao contrário/são as águas passadas”— e num movimento incessante macera, tritura, rumina e dissolve as personagen­s de Esther Greenwood (Sylvia Plath), da amiga de Mlle Vinteuil (Proust); os poetas Mário de Sá-Carneiro, Friedrich Rückert, Camões; as imagens da “maja desnuda” de Goya e das “pessoas do ajuntagent­e” dos quadros de Rubens e as vozes circunstan­ciais de Anabela, Maria Bárbara, Irene e Magda em uma pessoalida­de mal disfar-

Saber ler Adília Lopes é necessaria­mente saber ler a tradição e o contemporâ­neo, o que há de mais erudito e o que vive ao rés do chão, daí a necessidad­e de o leitor saber partilhar as regras do jogo, do contrário o perigo estará sempre à espreita

çada que transita entre a dor —“o resto é um coração/que se abre com a unha/mas hoje não tenho unhas”—, a solidão —“Depois de lamber cuidadosam­ente/as minhas feridas”e algum erotismo oscilante— “(só lhe toquei uma vez/sem querer/e pedi-lhe automatica­mente desculpa)/mas porque com a Magda/ não tinha prazer nenhum.”

Mas o jogo de vozes não para por aí. O universo infantil surge como uma espécie de autoficção que se cola em meio a outras personagen­s.

Papel, tesoura e dobradura são instrument­os de punição, o Luna Parque transforma-se em “um sítio triste” e a presença da mãe reforça os erros de uma educação de opressão e ausência de diálogo, já que “a maior parte dos acidentes são devidos/a prudência exagerada/ se a criança não fosse pela mão da mãe”.

Adília Lopes mostra as su- as cartas e, irônica e constantem­ente, muda de posição. Ocupando um distanciam­ento estratégic­o, denuncia seus adversário­s: seja a rapariga —“que não usa de consideraç­ões primárias” e “foi por isso que ela conseguiu/ aquele lugar de secretária do diretor/da firma Amantes & Amantes, Lda.”—, seja a sociedade anestesiad­a pelo consumismo frenético —“o problema do mundo actual/.../é ser um mundo sem sobremesa/é o mundo da papinha feita/quando a papinha não está/feita faz-se/uma anestesia local ou geral...”.

Se este procedimen­to formal (pastiche) parece provocar o riso fácil e o coloquiali­smo da linguagem sugerir uma literatura menor, é justamente aí que mora o perigo.

O volume das vozes em constante tensão, o efeito das intertextu­alidades literárias e plásticas, a forma dos poemas que conjugam em si pequenas narrativas revelam o substrato de um pensamento essencialm­ente radical e atento ao mundo.

Por isso, aproximá-la a Madonna, ainda que seja de forma elogiosa, é perder o lance, retroceder na jogada, errar o tom. Adília Lopes é poetisa pop, como ela mesma afirma, porém repudia o consumismo, o mundo midiático, a exposição, o sucesso a qualquer preço, tudo o que a cantora americana representa.

Saber ler Adília Lopes é necessaria­mente saber ler a tradição e o contemporâ­neo, o que há de mais erudito e o que vive ao rés do chão, daí a necessidad­e de o leitor saber partilhar as regras do jogo, do contrário o perigo estará sempre à espreita.

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 ?? Reprodução ?? A portuguesa Adília Lopes, em sua casa
Reprodução A portuguesa Adília Lopes, em sua casa
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 ?? Derek Speirs - 19.out.2005/The New York Times ?? John Banville às margens do rio Liffey, em Dublin, Irlanda
Derek Speirs - 19.out.2005/The New York Times John Banville às margens do rio Liffey, em Dublin, Irlanda
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