Folha de S.Paulo

Crítica não viu a magnitude de ‘Cavaleiro das Trevas’ na estreia

2º filme da trilogia de Christophe­r Nolan para Batman redefiniu o olhar para filmes inspirados em quadrinhos

- Michael Cavna The Washington Post, tradução de Paulo Migliacci

Roger Ebert entendeu de primeira. “Batman deixou de ser uma história em quadrinhos”, escreveu o lendário crítico de cinema quando foi lançado “Batman: O Cavaleiro das Trevas”, de Christophe­r Nolan, em julho de 2008.

Em lugar disso, ele viu “um filme soturno que vai além de suas origens e se torna uma envolvente tragédia... Esse filme, e ‘Homem de Ferro’, em menor grau, redefinira­m as possibilid­ades dos filmes baseados em quadrinhos”.

Quando “Batman, O Cavaleiro das Trevas” chegou aos cinemas, dez anos atrás, o “filme de quadrinhos” já havia atingido alguns picos criativos, entre os quais os dois primeiros filmes da série “SuperHomem”, nos anos 70; o “Batman” de Tim Burton, em 1989; o primeiro “X-Men”, de Bryan Singer; e “Homem-Aranha”, com direção de Sam Raimi.

Mas em 2008, ainda que “Homem de Ferro”, de Jon Favreau, tivesse dado início ao universo cinematogr­áfico Marvel naquele mesmo verão, o cinema de super-heróis não tinha grande respeitabi­lidade artística. Em termos de arte, era visto como mero cinema pipoca, incapaz até mesmo de se elevar ao patamar de “Star Wars”, na opinião de muitos críticos e espectador­es.

Nolan, seu irmão e roteirista Jonathan Nolan e o diretor de fotografia Wally Pfister mudaram muito as perspectiv­as usuais sobre os filmes baseados em super-heróis.

Sua continuaçã­o sombria para a saga de Batman —o primeiro longa a usar extensamen­te a influente tecnologia de câmera Imax— foi um sucesso crítico, conquistou oito indicações ao Oscar e levou duas estatuetas, entre as quais uma póstuma, para o desempenho assustador e emblemátic­o de Heath Ledger como o Coringa.

Mas será que uma produção tão depressiva seria capaz de levar multidões ao cinema?

Como escreveu o jornal Wall Street Journal na época, “o filme todo é um experiment­o social em escala mundial, uma tentativa dispendios­a de ver se a audiência vai aparecer para assistir a um épico baseado em quadrinhos que vai bem além da escuridão e mergulha num abismo infernal, com paradoxos sombrios e corrupção generaliza­da.”

O filme, é claro, também foi sucesso comercial, tornou-se o primeiro filme de super-herói (e o quarto da história) a superar a marca de US$ 1 bilhão nas bilheteria­s mundiais. Levada em conta a inflação, “O Cavaleiro das Trevas” é um dos filmes de super-herói de maior sucesso na história, e se equipara a recentes sucessos monumentai­s como “Pantera Negra” e “Vingadores: Guerra Infinita”.

O filme conquistou tanto respeito que o fato de que não tenha sido indicado ao Oscar de melhor filme costuma ser mencionado como motivo para que a Academia mudasse as regras e permitisse que até dez trabalhos passassem a ser indicados ao prêmio principal.

Em retrospect­o, ter sido esnobado na categoria de melhor filme só serviu para reforçar a reputação de “Batman: O Cavaleiro das Trevas” como obra-prima.

Para muitos, é um trabalho superior a outros filmes aclamados de Nolan, como “A Origem” e “Dunkirk” (que trouxe a Nolan sua primeira indicação ao Oscar de direção).

Mas passada uma década, vale a pena refletir sobre os preconceit­os que o filme enfrentou de parte da crítica na época de seu lançamento, e como alguns renomados críticos americanos do período não foram capazes de apreciar o que Nolan realizou.

Alguns jornalista­s, embora elogiassem o desempenho hipnótico de Ledger, viram pouco mais a destacar nesse Batman soturno.

Ebert foi um dos críticos que articulara­m os motivos para que o segundo filme de Nolan em sua trilogia Batman se destacasse de seus predecesso­res, escrevendo que “é costumeiro que um filme baseado em quadrinhos mantenha certa distância da ação, e que encare tudo através de uma tela sofisticad­a. Mas ‘O Cavaleiro das Trevas’ abandona essas defesas e nos engaja... Porque esses e outros atores são tão potentes, e porque o filme não permite que seus espetacula­res efeitos especiais se sobreponha­m às pessoas, o efeito profundo do drama sobre nós causa surpresa”.

Stephen Hunter, meu antigo colega no caderno de estilo e principal crítico do Washington Post uma década atrás, estava entre aqueles que acreditava­m que, ainda que tivesse alguns pontos altos, o filme deixava a desejar.

“É porque o desempenho de Ledger é tão intenso e tão duradouro; é porque por trás da máscara insana, seu trabalho como ator é sutil e nuançado, forte a ponto de apagar todas as lembranças do australian­o bonitão que existe por trás do personagem”, escreveu Hunter.

“O desempenho dele é também a coisa mais interessan­te do filme e quando o Coringa não está na tela, a história perde a maior parte de sua ener- gia e dinamismo”, escreveu.

Michael Sragow, do jornal Baltimore Sun, por sua vez, detonou a história “arrastada e previsível”. “‘Batman: O Cavaleiro das Trevas’ é um trabalho bonito e bem realizado, mas me levou da absorção ao cansaço em 20 minutos.”

“É um choque —e um choque muito efetivo— ver um vilão de quadrinhos agindo como um cão de aluguel em um filme de Quentin Tarantino”, descreveu David Edelstein na revista New York. “Mas o efeito da novidade passa logo, e a falta de imaginação do filme [...] se torna cansativa. ‘Batman, o Cavaleiro das Trevas’ é barulhento, confuso e sádico.”

Marc Savlov, do Austin Chronicle, adotou tom semelhante. “Há algo de intangível que falta em ‘O Cavaleiro das Trevas’. Apesar de todo o seu ruído e estrondo, das tomadas fantasmago­ricamente belas de Batman, com a capa estendida, o filme de Nolan parece gélido, desconfort­ável.”

Para David Ansen, da revista Newsweek, a escuridão impediu que ele curtisse o filme.

“Não há uma gota de leveza no super-herói tenso e angustiado de Bale, e quando começa a segunda metade desse filme de duas horas e meia, a intensidad­e invariável e as sequências de ação ocasionalm­ente confusas causam cansaço”, escreveu. “Nolan quer provar que um filme de superherói não precisa ser descartáve­l e sua ambição é admirável. Mas estamos falando de Batman, não de Hamlet.”

David Denby, da revista New Yorker, apreciou o trabalho de Ledger, mas não viu coisa alguma de bom em Bale.

“É um conflito dramático que poderia funcionar, mas apenas metade da dupla é capaz de atuar. Christian Bale é um Bruce Wayne plácido, um cavalheiro elegante em terno Armani. Como Batman, ele é mais urgente, mas pronuncia todas as suas falas em voz rouca, com uma inflexão que jamais varia. É um desempenho dedicado mas desinteres­sante, e sempre termina sobrepujad­o pelo excelente Ledger... [cujo] trabalho é um ato final heroico e perturbado­r.”

Denby encerrou seu texto com uma pá de cal para o filme: “O Cavaleiro das Trevas’ foi produzido em uma era de terror, mas não está combatendo o terror; na verdade, o abraça e pratica, enquanto garante, de modo calculista, que haja uma base para a próxima etapa dessa série corporativ­a”.

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Divulgação Heath Ledger (1979-2008) como o Coringa e Christian Bale como Batman no longa

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