Folha de S.Paulo

Interpreta­ção historicam­ente informada

As disputas sobre o barroco tomam por objeto as formas de interpreta­ção do imenso acervo

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O período barroco durou um século e meio e chegou ao fim, segundo convenção corrente, em 1750, com a morte de Johann Sebastian Bach, em Leipzig, aos 65 anos.

O repertório desse estilo está definitiva­mente fechado; todos os compositor­es estão mortos. Enquanto viveram, Vivaldi, Rameau, Monteverdi, Telemann, Haendel, Pachelbel e mais centenas de outros não travaram controvérs­ias internas e tampouco dispunham de um espaço público para discussões estéticas.

As disputas (se é que podemos assim chamá-las) sobre o barroco surgem na segunda metade do século 20 e tomam por objeto as formas de interpreta­ção do imenso acervo.

Um dos consensos sobre o tema é considerar esteticame­nte incorretos o arranjo e a versão sinfônica que o maestro britânico Leopold Stokowski fez, em 1940, para o filme “Fantasia”, de Walt Disney. Sua “Toccata e Fuga”, em dó menor (índice BWV 565), de Bach, cometia o oportunism­o de se apoderar do barroco apenas pela beleza melódica.

Mas o verdadeiro umbigo da questão é um pouco mais tardio e se desenvolve nos anos 1950. Em 1952, foi criado na Itália o conjunto de câmara I Musici; no ano seguinte, na Áustria, o Concentus Musicus de Viena.

Os italianos foram fundamenta­is na divulgação da música de Albinoni e Vivaldi, cujas “Quatro Estações” se tornaram um best-seller fonográfic­o nos anos 1960-70. O que o I Musici e grupos semelhante­s propunham era uma interpreta­ção do barroco que incorporas­se as mudanças técnicas dos instrument­os do século 20.

Já os integrante­s do Concentus MuA sicus de Viena, criado pelo alemão Nikolaus Harnoncour­t, propunham um trajeto bem diferente. Sua novidade era a pesquisa sobre instrument­os de época, no diapasão menos agudo (a nota lá, de afinação), adotado no barroco, e a rearticula­ção das frases musicais, que haviam sido “contaminad­as” pelo jeito mais adocicado de tocar, em voga a partir do romantismo, no século 19.

Essas propostas marcam a música historicam­ente informada, uma escola de interpreta­ção com nomes como o holandês Frans Brüggen, o britânico John Eliot Gardiner, o alemão Reinhard Goebel, o belga Philippe Herreweghe e, no Brasil, Ricardo Kanji e Luís Otavio Santos.

As gravadoras logo viram que estavam diante de um nicho comercialm­ente muito rico. Criaram departamen­tos para pesquisar, em arquivos, um repertório ainda inédito e davam cobertura para que empresário­s e músicos mergulhass­em nas formas originais de interpreta­ção.

Uma constataçã­o importante está no fato de as duas correntes —a tradiciona­l e a mais inovadora— não terem se digladiado para se impor como a única forma verdadeira de lidar com o repertório barroco. E há motivos para isso.

É rápido e fácil refazer a afinação de um violino ou de um violoncelo. Basta esticar menos as cordas para obter uma nota lá mais grave. Mas essa maleabilid­ade não existe com os instrument­os de madeira (oboé, flauta, fagote) ou metal (trompetes ou trombones). Seria necessário construir novos instrument­os.

Por uma questão de comodidade, os conservató­rios de ensino musical continuara­m a praticar a estética tradiciona­l, e o mesmo ocorreu com os estudantes neles formados que se profission­alizaam em orquestras sinfônicas. Dentro delas —da Filarmônic­a de Berlim à Osesp—, bastava respeitar o número de instrument­istas requeridos pelos compositor­es do início do século 18 para que se interpreta­sse o barroco com certa honestidad­e.

O fato é que os praticante­s da música historicam­ente informada deram novo passo na direção da ampliação do repertório barroco conhecido. Passou-se a gravar, por exemplo, óperas desconheci­das de Haendel —elas são musicalmen­te bonitas, mas têm libretos fraquíssim­os, o que dificultav­a a encenação. Buscou-se também, como lembra Mônica Lucas, da USP, o repertório praticado pelos castrati (homens castrados na infância para manter a voz aguda). Um dos monumentos mais emblemátic­os foi a gravação em 60 CDs, de 1971 a 1989, da integral das cantatas sacras de Bach, regidas por Harnoncour­t e Gustav Leonhardt.

Mas os historicam­ente informados enfrentara­m problemas, como diz Guilherme de Camargo, professor da Escola de Música do Estado de São Paulo. Eles procuraram quebrar o parâmetro construído no século 19 pelo Conservató­rio de Paris, em que o intérprete valia mais que a música no pentagrama. Os músicos da nova corrente, contudo, tornaram-se celebridad­es e modelos que passaram a ser imitados —fenômeno de novo personalis­mo constatado em 2007 pelo oboísta americano Bruce Haynes, em “The End of Early Music” (o fim da música antiga).

 ?? Leonhard Foeger/Reuters ?? O maestro alemão Nikolaus Harnoncour­t conduz concerto da Filarmônic­a de Viena, em 2003
Leonhard Foeger/Reuters O maestro alemão Nikolaus Harnoncour­t conduz concerto da Filarmônic­a de Viena, em 2003

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