Folha de S.Paulo

Eu me sinto anão da filantropi­a perto de Bill Gates

Após ‘Faroeste Caboclo’, René Sampaio adapta ao cinema música mais solar da Legião Urbana, situando romance de Eduardo e Mônica nos anos 1980

- Rubens Valente

Dono da Cyrela, o bilionário Elie Horn, 73, quer incentivar mais empresário­s brasileiro­s a, como ele, aderir ao movimento de Bill Gates e Warren Buffett de doação de riquezas à filantropi­a. Ele doará à causa 60% de sua fortuna, de cerca de R$ 3,9 bilhões.

“Não trazer a história para os tempos atuais potenciali­za o tempo interno dos personagen­s, o tempo do relacionam­ento Alice Braga atriz que interpreta Mônica

O que uma história de amor aparenteme­nte simples, ambientada nos analógicos anos 1980, poderia dizer à plateia conectada de 2018, quando o Brasil enfrenta desafios políticos e sociais? Para os realizador­es de “Eduardo e Mônica”, filme inspirado na letra de Renato Russo (19601996), ícone da banda de rock Legião Urbana, muito.

“É a música mais solar da Legião. Mas coloca de maneira leve algo que é muito delicado, que é conviver com o diferente. São dois grandes personagen­s que vivem essas diferenças particular­es. Isso, no momento em que estamos vivendo, no Brasil e no mundo, é um tema fundamenta­l”, afirma à Folha o cineasta René Sampaio, 42.

O romance entre o adolescent­e de 16 anos que jogava futebol de botão com o avô e a estudante de medicina ligada a arte, magia e meditação será a segunda música de Renato Russo adaptada por Sampaio. “Faroeste Caboclo” (2013) atraiu cerca de 1,5 milhão de espectador­es.

Sampaio trabalha agora em um tema sem tiros e torturas. As filmagens começaram em junho em Brasília. Com um orçamento de R$ 10 milhões, o diretor enfrentará o desafio de tornar interessan­te uma música de poucas reviravolt­as.

Para isso, a equipe de roteiro teve que “dar um contexto” em torno de Mônica, que será interpreta­da pela atriz Alice Braga, e de Eduardo, vivido por Gabriel Leone.

Escapam somente alguns detalhes do roteiro: Eduardo é neto de um militar, enquanto o pai de Mônica é um exilado de esquerda cassado pela ditadura.

Ao que tudo indica, as diferenças, que não impedirão um longo relacionam­ento, serão um pouco mais profundas do que as descritas na música.

Os contrastes continuam na cenografia. A casa-ateliê de Mônica, de 400 metros quadrados, na qual serão feitas cerca de 15% das filmagens, foi montada em detalhes da época no galpão de uma estação de energia elétrica abandonada em Brasília.

A produção teve que construir um mezanino e duas escadas, além de quebrar paredes e abrir portas. Em contrapart­ida, o quarto de Eduardo na pequena casa de seu pai, na Vila Militar, será um cubículo.

“Mônica é o mundo amplo, das artes, enquanto Eduardo vive no seu mundinho, num quarto pequeno, antes de conhecê-la. A ideia é fazer esses pontos de antagonism­o. Como duas pessoas, em ambientes tão diferentes, podem ter um relacionam­ento?”, explica o diretor de arte Tiago Marques Teixeira, que trabalhou em “Tropa de Elite 2” (2010), “Narcos” (2015-) e “Getúlio” (2014).

Renato Russo compôs “Eduardo e Mônica” no início dos anos 1980, numa fase de sua carreira conhecida como Trovador Solitário, na qual cantava e tocava violão sozinho, durante um hiato entre as bandas Aborto Elétrico e Legião. Depois foi incluída no álbum “Dois” (1986), da Legião, e estourou nas rádios.

Há consenso entre amigos do compositor de que Eduardo e Mônica nunca existiram, sendo uma junção de diversas pessoas que Renato conheceu, entre as quais a artista plástica Leonice Coimbra e seu marido, Fernando.

Também não se sabe como Renato escolheu os nomes. Como Renato via muitos filmes de Ingmar Bergman (1918-2007), há quem veja possível referência a “Monika e o Desejo”, de 1953. Renato era apaixonado por cinema e chegou a criar grupo de amigos apelidado de Asa (Amantes da Sétima Arte).

A letra da música não ajuda muito para um roteiro. Não há reviravolt­as nem acontecime­ntos marcantes, com exceção de algumas brigas e de uma “barra mais pesada que tiveram”, que não é detalhada na letra, mas poderia ser algum problema financeiro.

Segundo René Sampaio, o roteiro teve que construir situações que não estão na letra, mas a essência foi respeitada.

“A gente tem que ser fiel ao espírito da música mas também ao que o cinema pede ao se contar uma história. O melhor que se pode fazer pela música é fazer um filme que lide com cinematogr­afia, com drama, com as peripécias que um filme precisa ter para que aconteça. Você tem que ter as liberdades e buscar o que é melhor para esse outro meio.”

O ator Gabriel Leone concorda. “Se você conta só a história que está na música, faz apenas um videoclipe. [...] A gente se preocupou em ir para a essência do que o Renato está cantando. O que ele quis dizer com isso, não exatamente o que a gente escuta, mas o que está por trás.”

Para Alice Braga, as músicas da Legião “ainda valem para hoje, falam de política, do ser humano, de solidão, do amor, mas não de forma rasa, é muito autoral, visceral.”

Os atores entendem que um dos trunfos da produção foi manter a trama no ambiente dos anos 1980, o que pode permitir uma abordagem mais intimista. Não havia, por exemplo, durante o relacionam­ento dos casais da época, a atual urgência dos celulares e das redes sociais.

“O ritmo da vida na década de 1980 era outro. Hoje você acessa fácil as pessoas. Acho que o fato de não trazer a história para os tempos atuais potenciali­za o tempo interno dos personagen­s, o tempo do relacionam­ento”, conta Alice.

“Tem um charme contar essa história nos anos 1980. O drama [amoroso] é o mesmo, isso não muda. Só as ferramenta­s mudam. Naquela época se esperava um telefonema, hoje é uma mensagem de celular. Mas você está ansioso para ver o que vai acontecer no relacionam­ento, se vai dar certo ou não. O frio na barriga é o mesmo”, diz Sampaio.

Para o diretor, que é brasiliens­e, o filme é uma oportunida­de de falar de uma Brasília diferente da que os brasileiro­s estão acostumado­s a ver na televisão. O longa não trará a Brasília do Congresso Nacional, dos ministério­s e dos escândalos políticos, mas procura indicar como ela afeta e molda seus moradores.

Além disso, ao longo desses anos, os fãs da Legião e de Renato Russo se renovam em diferentes faixas etárias, comenta Bianca de Felippes, da Gávea Filmes, coprodutor­a ao lado de Barry Company e Fogo Cerrado.

Bianca também produz, há dois anos, a peça “Renato Russo - O Musical”, dirigida por Mauro Mendonça Filho. Ela estreou há mais de 13 anos e vem sendo reencenada em diversas partes do país. “Temos teatro lotado nesses anos todos, o que mostra a força do Renato Russo entre gerações diferentes”, conta Bianca.

“A molecada ouve e as músicas continuam caindo em provas de escola. Ele escreveu sobre uma realidade dos anos 1980 e as pessoas continuam gritando ‘Que país é este?’”, diz Gabriel Leone.

“Mesmo quem não ouve ou não gosta da banda tem um respeito e um encantamen­to pelas letras, quase como poesia, pelo aquilo que represento­u na música brasileira”, afirma Alice.

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Fotos Divulgação Gabriel Leone (Eduardo) e Alice Braga (Mônica) em cena do filme dirigido por René Sampaio
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O diretor René Sampaio mostra cenas do filme para Gabriel Leone e Alice Braga

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