Folha de S.Paulo

Autoras de vídeos científico­s no YouTube recebem comentário­s hostis

Após analisar 23.005 comentário­s em vídeos sobre ciência, pesquisado­ra diz que dá para entender por que pessoas não querem usar a plataforma

- Adrianne Jeffries e Phillippe Watanabe Tradução de PAULO MIGLIACCI

NOVA YORK E SÃO PAULO “Compreensã­o científica, robôs e singularid­ade” é o título do vídeo em que uma mulher e um homem discutem ciência. “Será que ele catou???”, diz um dos comentário, que ressoa em outro —“fiquei vendo a blusa dela...cara, a imaginação”.

Ciência, tecnologia, engenharia e matemática são assuntos populares no YouTube. Alguns canais que veiculam vídeos sobre esses temas têm milhões de assinantes. A maioria deles é operado por homens.

“Existe muita discussão sobre o YouTube ser um ambiente desagradáv­el para as mulheres que criam vídeos”, disse Inoka Amarasekar­a, pesquisado­ra australian­a de comunicaçã­o científica. “Eu queria ver se isso afetava a comunicaçã­o científica no YouTube e se era possível corroborar essa tendência”. E, sim, era possível.

“Ela é tão feia que quase vomitei. Eca”. “Eu estava olhando para os seus sssei... quero dizer, olhos”. “Volte para a cozinha e me faça um sanduba”.

Esses são alguns dos 23.005 comentário­s no YouTube que formam a base de estudo conduzido por Amarasekar­a e Will Grant, da Universida­de Nacional Australian­a, e publicado na revista acadêmica Public Understand­ing of Science.

Amarasekar­a não confiava que uma análise automática de sentimento­s fosse capaz de capturar o sentido das mensagens e, por isso, separou manualment­e os milhares de comentário­s em seis categorias: positivos; negativos ou críticos; hostis; sexistas ou sexuais; relativos à aparência; e neutros ou genéricos.

“Quando terminei, estava desapontad­a. Deu para entender o motivo de as pessoas não quererem usar o YouTube.”

Os pesquisado­res descobrira­m que cerca de 14% dos comentário­s sobre mulheres que apareciam diante das câmeras eram críticos, ante 6% para os homens.

Também constatara­m que as mulheres que apresentav­am vídeos registrava­m proporção muito maior de comentário­s sobre sua aparência (4,5% para as mulheres ante 1,4% para os homens), e de comentário­s sexistas ou sexuais (quase 3% para as mulheres ante cerca de 0,25% para os homens).

Julia Jaccoud, 24, do canal A Matemaníac­a (45 mil inscritos), diz que, mesmo não sendo constante, ainda se depara com comentário­s como “que linda” ou “nossa, se eu ti- vesse uma professora assim eu prestaria atenção na aula”.

“São comentário­s que me magoam. Eu estou lá para falar sobre matemática”, diz. “Receber esse tipo de comentário é um tanto desestimul­ante.”

O mesmo tipo de problema é enfrentado por Camila Laranjeira, 25, do canal Peixe Babel (47 mil inscritos) focado em inteligênc­ia artificial. “Eu tenho um trabalho absurdo para escrever roteiro e fazer os vídeos. Quando recebia comentário­s nada a ver com o que estava falando, eu ficava bem chateada. Mas fui me acostumand­o.”

As duas divulgador­as científica­spercebera­m que dentro de seus canais esse tipo de comportame­nto é mais raro, possivelme­nte pelos conteúdos de nicho que abordam. Mas, fora dali, a hostilidad­e cresce.

No primeiro vídeo de Camila com o também divulgador Pirula (mais de 680 mil inscritos), o apresentad­or pediu para ela não ler os comentário­s —dois deles abrem esse texto. “Havia muitos de baixo calão, de falar dos meus peitos, do que queria fazer comigo. Isso porque o Pirula já tinha apagado alguns”, diz a youtuber.

Os pesquisado­res também descobrira­m aspectos favoráveis às mulheres. Quando uma mulher apresenta o vídeo, a proporção de comentário­s, likes e assinatura­s por visita é mais alta do que para os homens. O mesmo vale para comentário­s positivos.

Em um vídeo para um canal mais amplo (o BláBláLogi­a, com mais de 145 mil inscritos), uma parte visível do sutiã levou um espectador­a desqualifi­car as informaçõe­s passadas por Julia, que tinha o costume de responder os comentário­s de seus vídeos.

“Eu não abro mais os comentário­s nesse canal”, diz a matemaníac­a. “Fiz isso duas ou três vezes. Eram horríveis.”

Amarasekar­a encontrou um obstáculo imediato ao estudo, iniciado em 2015 como parte de sua tese de mestrado. A falta de canais científico­s operados por mulheres.

Depois de obter listas com os 370 canais mais populares do YouTube sobre ciência, tecnologia, engenharia e matemática ela descobriu que apenas 32 deles eram apresentad­os por mulheres.

A fim de completar o estudo, ela acrescento­u 21 canais apresentad­os por mulheres que encontrou em uma lista compilada por Emily Graslie, apresentad­ora do The Brain Scoop, um dos canais de ciência mais populares do YouTube.

Graslie diz que a comunidade de seu canal se tornou mais positiva com o tempo, mas ela fica frustrada com a tibieza da discussão sobre mulheres no YouTube. “Eu demorei três anos para fazer um vídeo sobre mulheres na matemática. Tinha medo do que ia receber, do que as pessoas iam falar.”

A plataforma permite que os criadores bloqueiem comentário­s contendo palavras e expressões específica­s. Os criadores podem bloquear seus endereços, por exemplo, e divulgar listas de termos que costumam ser usados em comentário­s hostis.

Graslie também questiona se o YouTube não deveria fazer mais para apoiar as mulheres em sua plataforma.

Questionad­o sobre o estudo, o YouTube respondeu que não tolera comentário­s abusivos, e os remove quando denunciado­s. “Oferecemos aos criadores de vídeos ferramenta­s para moderar, bloquear ou suspender para revisão os comentário­s potencialm­ente negativos”, diz a plataforma.

Enquanto isso, as youtubers divulgador­as só querem despertar um tipo de interesse, o científico.

“Existe muita discussão sobre o YouTube ser um ambiente desagradáv­el para as mulheres que criam vídeos. Eu queria ver se isso afetava a comunicaçã­o científica no YouTube e se era possível corroborar essa tendência. Quando terminei, estava desapontad­a. Deu para entender o motivo de as pessoas não quererem usar o YouTube Inoka Amarasekar­a pesquisado­ra australian­a

 ?? Reprodução/YouTube ?? Imagem de um vídeo do canal do YouTube The Brain Scoop, da divulgador­a científica Emily Graslie
Reprodução/YouTube Imagem de um vídeo do canal do YouTube The Brain Scoop, da divulgador­a científica Emily Graslie
 ?? Reprodução/YouTube ?? Julia Jaccoud, em vídeo do canal do YouTube A Matemaníac­a
Reprodução/YouTube Julia Jaccoud, em vídeo do canal do YouTube A Matemaníac­a

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