Folha de S.Paulo

Capaz de nos olhar nos olhos

- Ruy Castro

Um filme em cartaz, “Hannah”, do italiano Andrea Pallaoro, tem como atriz principal a britânica Charlotte Rampling. Ela faz uma idosa que se arrasta por uma realidade medíocre e opaca, sem alegrias ou desapontam­entos, como se vê em sua postura derrotada e nos olhos cansados e indiferent­es. Na vida real, Charlotte está com 72 anos e, pelo que li, dispensou a maquiagem para parecer mais velha.

O que talvez seja chocante para quem a conheceu nos anos 70, linda, felina e fatal, em filmes com Sean Connery, Richard Burton, Peter O’Toole, e no melhor de todos, “O Porteiro da Noite” (1974), com Dirk Bogarde. Charlotte era admirada, mas não exatamente uma estrela —não no nível de Jane Fonda ou Faye Dunaway. Suas chances de sair numa capa de revista brasileira eram mínimas.

Mas, em fins de 1975, o acaso interferiu e fui seu instrument­o. O Jornal do Brasil ia lançar uma pioneira revista semanal ilustrada: a Domingo. Eu era o editor-executivo e, a duas semanas da estreia, a condessa Pereira Carneiro, dona do jornal, exigiu ver um número zero —uma edição experiment­al, que desse uma ideia de como seria a publicação. O problema é que ainda não tínhamos o assunto de capa e muito menos a foto.

Assim, fui à agência Gamma, em Botafogo, em busca de uma foto sobre a qual pudéssemos escrever alguma coisa. E deparei com um deslumbran­te close de Charlotte Rampling. Comprei-o e montamos a capa, dizendo que a revista seria como aquele rosto: forte, sereno, olhando o leitor nos olhos. Decidimos usar a ideia com uma garota carioca, a ser clicada por Evandro Teixeira. Mas, primeiro, tinha de ser Charlotte. Tudo bem, era só o zero. O um seria diferente.

Mas não foi. A condessa adorou a foto e decretou que ela seria a capa do número um. Fizemos chuiff. Hoje, vendo Charlotte aos 72 —forte, serena, capaz de nos olhar nos olhos—, fico contente por ter sido como foi.

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