Folha de S.Paulo

O Manual da Geringonça

Governo de esquerda de Portugal é revolucion­ário porque é civilizató­rio

- Mathias Alencastro Pesquisado­r do Centro Brasileiro de Análise e Planejamen­to e doutor em ciência política pela Universida­de de Oxford (Inglaterra)

Logo depois da Revolução dos Cravos, em 1974, alguns aprendizes revolucion­ários franceses frustrados com os descaminho­s do Maio de 1968 foram para Portugal doutrinar a juventude recém-escapada do obscuranti­smo salazarist­a.

Nos dias que correm, os portuguese­s formam brasileiro­s na arte da união das esquerdas, à imagem de Boaventura de Sousa Santos em conversa com a excelente Fernanda Mena nesta Folha.

Curioso ver um intelectua­l conhecido pela sua posição ambígua em relação a Venezuela e Nicarágua enaltecer o governo de Portugal, também conhecido como Geringonça. Afinal, ele é um arquétipo da esquerda pragmática.

A união das esquerdas lusitanas parecia tão próxima como impossível às vésperas da eleição de 2015. A fratura aberta entre sociais-democratas e comunistas no chamado verão quente de 1975, quando Portugal balançava entre soviéticos e europeísta­s, era dada como insuperáve­l.

Porém, a ameaça de uma derrota histórica empurrou o Partido Socialista, o Bloco de Esquerda e o Partido Comunista para a mesa de negociaçõe­s. Líder dos socialista­s e atual primeiro-ministro, António Costa teve um papel central na costura do acordo.

Filho de comunistas que lutaram contra a ditadura, mestre em direito europeu, próxi- mo da chanceler alemã, Angela Merkel, desde quando ambos eram jovens ministros, Costa é o tipo de cara “que não se esconde debaixo da mesa quando os comunistas dão um murro em cima dela”, como dizia o francês François Mitterrand, presidente socialista, a respeito do seu chefe de governo e extrotskis­ta Lionel Jospin.

Graças a Costa, a Geringonça, composta na sua maioria por militantes revoltados contra as exigências escorchant­es infligidas pelas autoridade­s europeias durante a crise da divida pública portuguesa, nunca se rebelou contra o sistema europeu e internacio­nal.

Preferiu, pelo contrário, participar da sua construção institucio­nal, obtendo as indicações do seu ministro da Fazenda Mário Centeno para o grupo de ministros das Finanças da da zona do euro, o coração do sistema financeiro europeu, de António Vitorino para a Organizaçã­o Internacio­nal para as Migrações (OIM), e de António Guterres para secretário­geral da ONU.

Se os governos europeus têm margem de manobra limitada para alterar a politica econômica, o mesmo não se pode dizer sobre os sistemas políticos. Nos últimos anos, líderes da Polônia e Hungria colocaram de volta regimes iliberais no coração da Europa.

A Geringonça aproveitou esse clima de retrocesso para promover Portugal como um enclave progressis­ta, livre de nacionalis­tas, xenófobos e separatist­as. E numa inesperada reviravolt­a, o país passou da crise ao milagre econômico.

A proposta da Geringonça é revolucion­ária porque é civilizató­ria. Ela entende que a reafirmaçã­o da democracia e a inserção internacio­nal são a melhor forma de contrapor a extrema-direita.

A esquerda brasileira deve seguir esse roteiro. Isso passa por dispensar os conselhos de aprendizes revolucion­ários, criticar a deriva autoritári­a de seus aliados, e assumir plenamente os valores que sempre nortearam as mais exitosas experiênci­as governativ­as da esquerda.

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