Folha de S.Paulo

Eu me sinto um anão da filantropi­a comparado a Bill Gates e Warren Buffett

Após aderir ao movimento de doação criado pelos bilionário­s americanos, dono da Cyrela quer convencer outros brasileiro­s

- Eliane Trindade

Prestes a completar 74 anos neste mês, o bilionário Elie Horn quer fazer os ricos doarem mais e melhor.

“Quero chacoalhar a sociedade”, diz o dono da Cyrela, que assumiu o compromiss­o público de destinar para filantropi­a 60% de sua fortuna, estimada em US$ 1 bilhão (cerca de R$ 3,9 bilhões).

Movido por espírito religioso de fazer o bem e de não se deixar escravizar pelo dinheiro, ele admite que se sentiu mal quando entrou para o clube dos bilionário­s com a abertura de capital da Cyrela em 2005. As ações da empresa passaram a valer 30 vezes mais em um ano. “Não foi por mérito meu.” A seguir os principais trechos da entrevista.

Que razões levaram o senhor a aderir ao The Giving Pledge? Faz 20 anos que me decidi. O The Giving Pledge faz três. Por quê? Faz muito bem à alma, a terceiros e também a você, neste mundo e no outro. Quero ser rico na eternidade. São valores familiares, judaicos, de não trabalhar só para si, de devolver à sociedade.

O que move o senhor? O espírito do bem, da justiça e do significad­o do dinheiro. Ou você escraviza o dinheiro, ou é escravizad­o. Se ajudar alguém, você escravizou o dinheiro. Se deixa para usufruir o luxo, é escravo. Como foi em família a decisão de doar parte da herança que seria dos seus filhos? Pensei em doar 100%, como meu pai. Mas um guru cabalista me aconselhou a doar 60%. Meus filhos falaram: “Papai, faz isso em vida”. Não é igual depois da morte. Tirar do bolso e dar é difícil. Na hora que você promete doar, o dinheiro não é mais seu. Se não fizer, é ladrão.

Seu pai é seu maior exem

plo? Ele fazia o bem por convicção e cultura. Faleceu faz 38 anos e senti o dever de fazer o bem para elevar a alma dele. Espero que a tradição se mantenha com filhos, netos, tataraneto­s.

Que legado quer deixar? Espero cutucar a sociedade para fazer o bem. Se todos os ricos do mundo ajudarem os pobres, vai ter justiça, equilíbrio e um mundo melhor.

É mais difícil cutucar ricos em

um Brasil tão desigual? É óbvio que o Brasil precisa mais do que os Estados Unidos, onde existe cultura de doação.

Como é fazer esse movimento aqui? Temos um grupo de pessoas inteligent­es e competente­s que decidiram fazer um guarda-chuva do bem. Uma plataforma que vai abarcar dez causas: combater exploração sexual de crianças e adolescent­es, primeira infância, saúde, deficiênci­a, combate à pobreza, educação, meio ambiente, idosos, ética na política, civismo.

Tem também cultura de do- ação para ensinar a não deixar dinheiro na gaveta.

Como se formou este grupo para investir na plataforma? Eles me chamaram e eu aderi na hora. A ideia é unir forças para destinar centenas de milhões de reais para causas. A fundo perdido. O modelo está sob análise. Não posso citar nomes ainda. São grandes representa­ntes do PIB dispostos a atuar para poder chacoalhar o país.

Como homem de negócios, o

que agrega à filantropi­a? É importante não só doar, mas doar bem. A plataforma tem que ser eficiente, ter visão estratégic­a, acompanhar­a aplicação dos recursos e ser ponte entre doador e gestor.

Queremos ajudar as pessoas adoarem mais e melhor. Basta gostar de fazer o bem para ser do clube. Muitos fazem filantropi­a, mas em um modelo em que o impacto é limitado, quando pode ser maior.

Quandoo sen horse tor nouum

filantropo? Comecei no colégio arrecadand­o cruzeiros para ajudar o moço da esquina.

Quando fazia negócios, eu vendia um apartament­o por 100 e o cara queria pagar 90. Fazia um acordo: paga 90 e a diferença vai para caridade, que o comprador escolhia. Todo mundo aceitou, menos um. Um bandido.

Qual foi sua primeira causa? É botar Deus na terra, mas não vai estar entre as dez da plataforma. Convencer os jovens de que Deus existe é uma causa importante, mas não é “cool”. Falar em religião hoje não é bom por causa dos extremista­s. Sem extremismo faz muito bem.

Quais são as causas mais importante­s na sua vida? Tenho duas: o trabalho e a filantropi­a. Detesto passar tempo sem fazer nada, me frustra. Tem também a mensagem de dar valor ao meu tempo. Sentir-se inútil é uma desgraça.

Não pretende se aposentar? “Never” [nunca]. O importante é produzir, dar significad­o ao dinheiro, ao tempo. Se eu me aposentar, vou ficar gagá e encher minha esposa. Eu não me perdoaria se ficasse inativo e ineficient­e.

Por que criou o Instituto Liberta para atuar no combate à exploração sexual infantil? A ideia é mexer com a sociedade brasileira para conscienti­zar as jovens, os velhos. É tabu, um campo minado.

Ninguém quer associar sua marca a abuso sexual infantil? Foi a razão que fez a gente assumir a causa. Não é “cool”. No Brasil, temos muitas meninas abusadas, exploradas. Nossa ideia é ajudá-las a sobreviver, para que o mal não se repita. Temos feito visitas às escolas do estado de São Paulo, falando com professore­s para que sejam vigilantes e contatando 2,5 milhões de crianças.

O instituto faz campanhas de conscienti­zação, seminários. Temos vários parceiros, trabalhos no Amazonas e no Pará.

Como seleciona o que vai apoiar? Tenho vergonha de falar não. Alguém me ensinou que se não falar, estou morto. Então, hoje falo. Não quero ver coisas novas. As causas que tenho já são bastante grandes.

Que experiênci­as o senhor teve ao visitar projetos? Fui para a ilha de Marajó e perseguimo­s uns bandidos que estavam com umas meninas em outro barco. Quase demos um flagrante. Já era convicto sem ver, agora que vi sou escravo da causa. Sinto aqui [aponta o coração]. Deu um significad­o mais forte para minha luta.

Esteve também no Nordes

te? Sim. Adorei. Visitei a ONG Amigos do Bem. A Alcione [Albanesi, fundadora] vai fazer parte da plataforma. Essa mulher faz milagres. É pai, mamãe, vovó, diretora e presidente para 60 mil pessoas. Dá educação, cultura, comida.

Ela me apresentou para mil crianças, que me deram 2.000 beijos. Passei dois dias lá e nunca senti tanto amor na vida. Vamos ajudá-la a ter mais doadores, se Deus quiser.

Pesquisas mostram que o brasileiro pobre, proporcion­almente a sua renda, doa três vezes mais do que o rico. Por

quê? No meu entender, falta comunicaçã­o, convencime­nto. A minha tese é: Deus existe, estamos aqui para ser testados. Eu quero passar no teste.

Como é o seu contato com grandes filantropo­s como Bill

Gates? Lá fora, Bill Gates e Warren Buffett vão doar 99% de suas fortunas para caridade. São exemplos.

Nos EUA, eu me sinto um anão. Sou o menorzinho deles. A gente acha que faz muito e quando chega lá vê que não faz nada. Isso ajuda a nos convencer a fazer muito mais.

O senhor convenceu outro brasileiro a aderir ao The Giving Pledge? Estou tentando. Falei com alguns. Um ia aceitar, mas não aceitou. Um outro, a mulher não deixou.

Mas não desisto. Acho que neste ano vou ter a chance de convencer um ou dois. Quero criar o The Giving Pledge Brasil em outras condições: em vez de doar ao menos 50%, aqui o percentual seria de 20%.

Faltam incentivos fiscais ou maior taxação sobre herança, como nos EUA? Alguns dizem que sim, outros não. O problema é ter vontade. No Brasil, os dividendos são isentos de imposto de renda. É um dinheiro que você pode doar, já pagou o imposto. Todo meu dinheiro [para filantropi­a] provém de ações.

Foi com a abertura de capital da Cyrela em 2005 que o senhor entrou de vez para o

clube dos bilionário­s? No começo, eu me senti mal. Depois, me acostumei. Como a Cyrela ficou em primeiro lugar no setor por 15 anos, aconteceu. Sabe por quê? É um teste de Deus. Se você ganhar 10 ou 100, vai doar na proporção.

Minhas ações subiram 30 vezes naquele ano. Isso não é normal. Não é meu mérito, com certeza. Foi um teste para ver se eu correspond­ia.

“Se você ganhar 10 ou 100, vai doar na proporção. As ações da Cyrela subiram 30 vezes em 2005. Isso não é normal. Não é meu mérito, com certeza. Foi um teste de Deus para ver se eu correspond­ia

O senhor passou no teste? A gente nunca passa, sempre se pode fazer mais.

No Brasil, quem lhe inspira? Amador Aguiar [fundador do Bradesco] fez uma coisa maravilhos­a, a Cidade de Deus, uma escola por onde já passaram mais de 500 mil alunos. É um orçamento gigante. O trabalho dele é excepciona­l. E a Fundação Bradesco é sócia do banco. Uma coisa importante.

Como começou seu império

na construção civil? Havia um corretor que vinha na minha casa oferecer apartament­o para meu pai e meu irmão. Comprava-se para pagar em seis meses, sem correção monetária. Como havia inflação alta, se vendia no outro dia com lucro grande. Sem dinheiro. Assim comecei a conhecer o ramo. Tudo que comprava, eu vendia.

Sou persistent­e, não sou bandido. As pessoas confiam. Para ser um bom corretor, não pode mentir. E sou workaholic.

Qual é o seu maior orgulho

como self-made man? Sou um investidor a longo prazo. Lá em cima, não vão me perguntar se eu fui bom ou mau empresário, mas se fiz o bem.

Meu sonho é que lembrem de mim como um homem que tentou fazer o bem. Quero um mundo sem pobreza, injustiça, violência, maldade.

O mundo melhorou ou piorou em relação ao que o senhor nasceu? Não sei. Nasci na Síria e saí de lá quando tinha seis meses. Cheguei [ao Brasil] com zero tutu, no barco na quarta classe, passagem paga por parentes, que deram US$ 10 mil dólares para meu pai começar a trabalhar. E ele se fez.

O senhor acompanha a situação na Síria. Apoia refugiados? Todas as causas são boas. Toda criança tem que ser ajudada. Já ajudei refugiados, mas não é uma causa da plataforma. Não dá para fazer tudo.

O que o Brasil significa para

o senhor? É o país que me acolheu, é tudo para mim. O ser humano no Brasil é muito bom. Tem alma nobre, gentil.

Por que o Brasil não é ainda o

país que poderia ser? Eu tenho algumas ideias radicais. Faria uma anistia geral. Partiria da estaca zero, para começar tudo de novo. Não gosto de falar de política. Não apito nada e ninguém vai me ouvir.

Para ser político tem que falar bonito, saber convencer. Sou a favor da liberdade, do capitalism­o, do trabalho. Sem o setor privado o país não anda.

O senhor fala publicamen­te sobre o diagnóstic­o de Mal de

Parkinson? Não tenho vergonha. Estou doente. Deus mandou por alguma razão. Aceito. Fiquei revoltado quando descobri em 2012, mas a doença está controlada por remédios.

Todo dia, faço na marra cerca de duas horas de ginástica, natação, fisioterap­ia e karatê. Perco todas as lutas (risos). É gostoso. Você não para de lutar e de se defender. Uma sensação boa de estar vivo.

Vai ganhar a luta pela filantropi­a? Com certeza. Eu não desisto. E tem o seguinte: na hora que você faz o bem, Deus é obrigado a ajudar.

 ?? Eduardo Anizelli/Folhapress ?? Elie Horn, 73 Formado em direito, o empresário nascido na Síria chegou ainda bebê ao Brasil. É fundador da incorporad­ora e construtor­a Cyrela e criou o Instituto Liberta, que combate a exploração sexual de crianças e adolescent­es. Tem 3 filhos e 3 netos
Eduardo Anizelli/Folhapress Elie Horn, 73 Formado em direito, o empresário nascido na Síria chegou ainda bebê ao Brasil. É fundador da incorporad­ora e construtor­a Cyrela e criou o Instituto Liberta, que combate a exploração sexual de crianças e adolescent­es. Tem 3 filhos e 3 netos

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