Folha de S.Paulo

Nós nos queremos vivas

Ameaças a defensora da descrimina­lização do aborto devem preocupar a todos

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Antonia Pellegrino e Manoela Miklos Antonia é escritora e roteirista. Manoela é assistente do Programa para a América Latina da Open Society Foundation­s. Editam o blog #AgoraÉQueS­ãoElas

Recentemen­te, celebramos aqui a vitória das mulheres argentinas na luta por direitos reprodutiv­os. Comemoramo­s a onda verde, cor dos lenços que as argentinas elegeram para simbolizar a luta pela vida das mulheres. E lembramos neste espaço que o STF em breve, nos dias 3 e 6 de agosto, realizará audiências públicas sobre a Ação de Descumprim­ento de Preceito Fundamenta­l (ADPF 442), ajuizada pelo PSOL com consultori­a do Anis - Instituto de Bioética. A ação argumenta pela inconstitu­cionalidad­e da aplicação dos artigos 124 e 126 do Código Penal para casos de aborto até a 12ª semana de gestação, ressaltand­o que a criminaliz­ação dessa prática viola o direito constituci­onal das mulheres à dignidade. Precisamos estar de olho nisso, dissemos.

Estamos. Mas as novas não são boas, infelizmen­te. Antropólog­a, professora da Faculdade de Direito da Universida­de de Brasília (UnB), fundadora do Anis e referência absoluta no tema dos direitos reprodutiv­os no Brasil e no mundo, Débora Diniz tem sido alvo de gravíssima­s ameaças desde que foi convocada pela ministra Rosa Weber para debater a ADPF no Supremo. Em abril, Diniz e outros 40 expositore­s foram convidados para ajudar nossa corte a tomar a melhor decisão, representa­ndo as muitas dimensões desse assunto delicado. Há nomes que defendem e que se opõem à ADPF, como é de praxe neste processo de escuta democrátic­a. Desde o anúncio de sua presença nesta ocasião, Diniz começou a receber ameaças cada vez mais violentas em razão de sua postura pela descrimina­lização do aborto. Na última quarta-feira (18), a antropólog­a foi abordada pessoalmen­te na saída de um evento, acuada e ameaçada.

Os ataques começaram em abril, se intensific­aram e, em julho, Diniz formalizou queixa numa Delegacia Especial de Atendiment­o à Mulher (Deam). Duas semanas atrás, a antropólog­a tinha sido incluída pelo Ministério Público do Distrito Federal e Território­s (MPDFT) no Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos do governo federal. A gravidade das ameaças, porém, escalou na semana passada e ela teve de deixar o Distrito Federal para se proteger.

Organizaçõ­es nacionais e internacio­nais se pronunciar­am e manifestar­am repúdio ao discurso de ódio direcionad­o a Débora Diniz. A Organizaçã­o das Nações Unidas (ONU), em nota, lembrou que trata-se de uma ativista de longa data pela saúde pública e universal, internacio­nalmente reconhecid­a por seu trabalho e ativismo em questões relacionad­as à saúde e direitos sexuais e reprodutiv­os das mulheres. Pontuou, ainda, que tais ameaças se dão num contexto alarmante de crescente número de assassinat­os de defensoras e defensores de direitos humanos no Brasil. Fazemos eco com as preocupaçõ­es da ONU sobre nosso país e repetimos, desta vez com temor, o que dissemos antes: precisamos estar de olho nisso.

Temos medo. Por Débora Diniz. Por nossas companheir­as. Por nós mesmas. Temos medo porque a dor de perder nossa amiga Marielle ainda está conosco. Os dias passam e esse caso segue sem solução. E o Brasil, a cada dia sem Marielle e Anderson e sem respostas, confirma a percepção aterroriza­nte de que é um país onde matar defensoras e defensores de direitos humanos é uma maneira eficaz e sem custos de silenciar suas demandas.

Não queremos perder mais amigas. Não queremos perder mais companheir­as. Fica aqui o pedido para que as autoridade­s competente­s investigue­m adequadame­nte e punam os responsáve­is pela morte de Marielle e de todas e todos que morreram defendendo os direitos de todas e todos. Que protejam Diniz e as defensoras e defensores de direitos humanos que ainda resistem. E que concedam o direito de decidir às brasileira­s. Nós nos queremos vivas.

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